Julgamento Márcia Calixto: sobre feminicídio, culpabilidade, poder de vida e de morte

por Renata Teixeira Jardim, advogada, mestre em Antropologia Social, integrante do Coletivo Feminino Plural e do CLADEM Brasil

Acabei com toda a familia para que Matheus não sofresse com minha prisão, assim melhor
(bilhete deixado pelo feminicída no local do crime)

Acompanhamos (Renata, Neuza Heinzelmann e Mariza Iracet) ao logo do dia de ontem (19) e hoje (20) o julgamento do assassinato de Márcia Calixto e seu filho, de cinco anos de idade. A tragédia, como promotores e advogados de defesa referiram-se, ocorreu provavelmente na madrugada do dia 25 de julho de 2012, horas depois de Márcia completar 39 anos de idade. Ela estava em casa, com o filho do casal quando seu marido matou ela e seu filho a golpes de facadas. O crime, que entristeceu a cidade, foi alvo de muita mídia na época. Impulsionou um movimento em defesa da justiça de seu assassinato e reforçou a luta do movimento de mulheres pelo fortalecimento da rede de atendimento as mulheres e seu nome foi dado ao centro de referência municipal na época recém inaugurado.

Bioquímico, com condições financeiras para contratar bons advogados e psiquiatras, sim, psiquiatras, estes, desde sua prisão, passaram a alegar que Ênio não poderia ser responsabilizado pelos seus atos pois não era capaz de entender o caráter ilícito de suas condutas pois estaria em surto psicótico, decorrido do agravamento de um processo depressivo deflagrado por perdas pessoais e pela descoberta de outro relacionamento da esposa[i]. Diferentemente da maioria das defesas de feminicídas que comumente alegam que os homens são tomados por forte emoção[ii] para justificar assim a conduta do réu e provocar a diminuição de sua condenação (social e jurídica), a defesa tomou a decisão de não seguir por esse caminho. O que teria a criança provocado ao pai que justificasse tal conduta? A retórica é levada pelo advogado de defesa ao plenário do júri, questionando-se como justificar o motivo de um pai matar o filho. Deixando claro, mais uma vez, que, para nossa sociedade – porque ali o julgamento não era por uma juíza ou juiz e sim por cidadãs e cidadãos, investidos de jurados, representando a sociedade porto-alegrense –  o direito penal não conseguiria explicar tal conduta, mas em relação a outra conduta – assassinar sua mulher – há sempre explicações. Matou-se porque amava de mais. Esfaqueou porque feriu sua honra. Estrangulou porque o traía. E o rol segue no machismo nosso de cada dia.

Ela, que era servidora municipal, havia relatado as colegas sobre as ameaças que vinha sofrendo, foi alertada dos perigos, porém, quando decidiu sair de férias para organizar sua vida (contam que ela estava buscando organizar-se para sair de casa e deixar Ênio) foi covardemente impedida de seguir com seus planos, ao lado do filho. Os problemas conjugais vinham desde sua gravidez, muito desejada e planejada por ambos, quando ela descobre um relacionamento extraconjugal dele, levando-a a separar-se por um período, mas toma a decisão de retomar a relação posteriormente – como muitas mulheres o fazem, seja por acreditar na mudança do parceiro, seja pelos filhos, seja por qualquer outro motivo. Não importa! Não importa porque a culpa não é dela! Não, quem mata não poder alegar que tomou uma escolha errada, como assim absurdamente o psiquiatra contratado por ele fez em seu parecer. Não, não, errar a escolha do parceiro não pode nunca justificar um assassinato. Também não pode apresentar um feminicída de sua mulher e de seu filho como submisso e muito apegado à família! Não se pode justificar um duplo assassinato por problemas de perda de emprego, morte da mãe e de relacionamento afetivo! Pasmem, tudo isso foi apresentado ao júri para explicar porque Ênio tomou a decisão de acabar com duas vidas.

No primeiro dia do júri, foram ouvidas testemunhas e dois médicos psiquiatras. Ao longo das oitivas, ia se apresentando a cena do crime, as facas usadas, para assassinar o filho e a esposa, contra si, bilhetes ordenados em cima da cama do casal com ordens para a empregada da família entregar cartões de crédito, tirar o lixo e pegar dinheiro para cuidar dos cachorros. Um bilhete direcionado ao pai, desculpando-se, outro para o sócio e cópias de e-mails com anotações justificando sua conduta pela possibilidade de Márcia estar mantendo relacionamento com outra pessoa. A discussão sobre casamento, traições desenrolou-se nos debates, realizados no segundo dia, deixando claro que este era o ponto nevrálgico quando se trata de crimes contra as mulheres, porque ele matou o filho neste contexto em que não aceitava o fim do seu relacionamento com a mãe dele. E quase ao fim, quando já estávamos com certa esperança que pelo menos neste julgamento resquícios da discussão ultrapassada (será?) da legítima defesa da hora não brotariam nas discussões, eis que o advogado de defesa, alegando que não poderia deixar de usar de todos os recursos necessários a defesa de seu cliente, sob pena de poder ter questionado a validade dela, lança mão, mais uma vez, caso não entendessem, que Ênio tinha “enlouquecido” naquela noite e portanto declarado não passível de responsabilização penal, então que aquelas juradas e jurados ali presentes considerassem que ele agiu porque estava tomado de forte emoção por ter descoberto a traição da mulher.

Quantas vezes ainda teremos que ver acontecer mortes de mulheres, de seus filhos, porque homens não aceitam que elas podem decidir tomar outro rumo em suas vidas? Desejarem colocar um ponto final nas agressões, em relacionamentos sem mais sentido? Até quando seguiremos escutando que homens enlouquecem por amor? Que assassinar mulheres por elas decidem separam-se é um crime passional? Um crime de amor? Nossa sociedade precisa pensar, e muito, o que ainda falta para pararmos de reforçar estes estereótipos, que levam a cada dia, pelo menos 10 mulheres serem assassinadas no Brasil. Assassinadas pelos seus companheiros, maridos, ou ex. Não importa, não são crimes passionais. São crimes de ódio, são crimes hediondos, todos crimes que não cabem justificar.

Felizmente, neste caso, fez-se justiça. Entendeu-se que pela organização apresentada por Ênio, dos bilhetes, da lembrança de detalhes de alguns fatos, das agressões físicas, do controle e do ciúme excessivo que exercia em Márcia demostravam não algum sofrimento psíquico, mas sim sua culpabilidade exacerbada. Foi condenado há 22 anos e 8 meses pelo assassinato de Márcia, tendo sido aumentada a pena pela forma vil a qual a matou, dentro de sua própria casa, sem dar chance de defesa, na madrugada, na presença de seu filho e por tratar-se de sua esposa. Pelo assassinato de seu filho foi condenado por 32 anos, tendo sido aumentado a pena pela idade, por ser seu pai, pela relação de afeto que tinham, por ele ter o matado enquanto dormia, para que ele não sofresse pela prisão do pai (entendido como extremo desvalorização da vida humana), pelo dever de proteção da criança e perversidade. Assim, foi então somada as penas, restando condenado a 54 anos e 8 meses em regime inicialmente fechado e tendo sido mantida a sua prisão preventiva. Por fim, por pedido do ministério público, foi encaminhado à polícia cópias do testemunho do psiquiatra contratado para verificação de possível crime de falso testemunho, visto que se alegou por parte da Promotoria que o médico mentiu em juízo ao atestar condutas do réu sem embasamento científico e empírico.

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[i] A alegação de que o réu estava em surto psicótico, tinha como objetivo socorrer ao instituto da inimputabilidade (artigo 26 do Código Penal), que entre suas causas está a patologia psíquica que em razão desta, faz com que o agente não tenha condições de autodeterminação na data do crime ou que seja inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato. Tal alegação é apresentada através de incidente de sanidade, que até que se faça as provas necessárias suspende o processo criminal. Caso seja considerado inimputável, o réu não recebe uma pena e sim uma medida de segurança, a ser cumprida, no caso de Ênio junto ao Instituto Psiquiátrico Forense, podendo ser liberado quando os médicos entendessem não mais perdurar sua periculosidade.

[ii] A previsão dessa tese encontra-se no art. 121, § 1º do Código Penal, que prevê como caso de diminuição de pena o homicídio praticado sob domínio de violenta emoção seguida à injusta provocação da vítima. Essa diminuição de pena ocorre na terceira fase da dosimetria e prevê uma redução de um sexto a um terço. Assim, a pena será do delito base, previsto no caput, podendo ter uma redução que varia de um sexto a um terço.

 

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