Projeto capacita profissionais sobre gênero e saúde mental das mulheres

Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Débora Fogliatto

De que forma o sofrimento psíquico pode estar relacionado a questões de gênero? Pode parecer estranho afirmar que as duas coisas estão ligadas, afinal, homens também experienciam problemas de saúde mental, mas o Projeto Girassóis: Gênero e Saúde Mental, que está sendo desenvolvido em Canoas, na região metropolitana, mostra que há sim conexão entre alguns problemas psiquiátricos e as diversas violências sofridas pelas mulheres na sociedade.

A formação proposta pelo Girassóis — elaborado pelo Coletivo Feminino Plural e com apoio da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, da Coordenadoria de Políticas para as Mulheres de Canoas e da Secretaria Municipal de Saúde — foi feita a partir de ações que incluíram um diagnóstico sobre a operação dos serviços de saúde, segurança e atendimento às mulheres na cidade; três cursos de capacitação com 60 horas cada para profissionais da rede pública; ações educativas com usuárias do Sistema Único de Saúde e da Rede de Atendimento às Mulheres em Situação de Violência; e estudos de caso.

A formação foi iniciada em março de 2014 e dividida em três cursos, que capacitaram profissionais da saúde, da rede de enfrentamento à violência contra a mulher e lideranças comunitárias. Foram 110 cursistas, além de 12 ações educativas em parceria com o projeto Mulheres da Paz nas Unidades Básicas de Saúde, totalizando cerca de 800 mulheres impactadas pelo projeto. Dentre os cursistas, apenas três eram homens, embora as formações fossem abertas para quem quisesse participar. “Os homens que se interessaram eram trabalhadores dos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial). Mas nos chamou atenção que quando a gente ia até a unidade de saúde, os médicos estavam disponíveis para conversar com a gente”, relatou a coordenadora técnica Leina Peres Rodrigues.

Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Embora na rede de saúde a maior parte dos trabalhadores sejam mulheres, o relatório apresentado no Seminário Gênero, componente essencial na atenção à saúde mental das mulheres, que aconteceu nesta terça-feira (7), mostra que os homens ainda ocupam as posições de poder e chefia. “Mesmo entre os médicos, as mulheres são maioria. Mas nas chefias dos serviços estão os homens”, apontou a coordenadora do Coletivo Feminino Plural, Télia Negrão. As profissionais mais interessadas nas formações foram as enfermeiras, técnicas de enfermagem e agentes comunitárias.

Em outra fase do projeto, foram selecionados sete casos que dão conta dessa transversalidade, para compor o relatório final. Foi observado pelo projeto que as causas apontadas pelas entrevistadas para o sofrimento psíquico são associadas, em geral, a conflitos familiares, insatisfação com o casamento e a vida sexual, controle excessivo por parte dos maridos, humilhação e assédio moral no lar. Leina observou também que mulheres com casos de violência obstétrica e que não receberam cuidados de saúde mental após traumas do tipo, assim como as que vivem com HIV/aids se aproximaram da iniciativa para relatar quanto sofrem com a discriminação.

Os problemas de saúde mental das mulheres são muitas vezes menosprezados, conforme aponta o Coletivo na cartilha de apoio às ações que foi distribuída para as participantes das formações. Mesmo com jornadas de trabalho exaustivas e a necessidade de cuidar dos filhos e realizar as tarefas domésticas, as mulheres são chamadas de “chorosas”, “nervosas”, “incompetentes”, “de TPM”, entre outras, tanto por companheiros quanto pelo tratamento prestado pelos serviços públicos, segundo a cartilha.

A desigualdade impregnada na sociedade afeta as mulheres, assim como a falta de autoestima devido às cobranças impostas pela mídia e pela sociedade. “O Brasil é um dos países do mundo que mais tem cirurgias plásticas de mulheres. Elas que cuidam da casa, criam as crianças sozinhas, chegam do trabalho e ainda, se forem pobres, têm que fazer todo trabalho doméstico de novo. É uma sobrecarga que não termina nunca”, observa a médica baiana Maria José Araújo, que foi consultora do projeto e fez uma palestra durante o encontro desta terça-feira.

Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Neste sentido, ela observa que um dos desafios encontrados é o fato de as políticas de saúde não darem atenção às questões específicas das mulheres, sendo homogêneas para toda a sociedade. Por isso, o projeto-piloto desenvolvido pelo Girassóis pode vir a se tornar referência no país, tendo sido inclusive acompanhado durante uma semana pela coordenadora de saúde da Secretaria de Políticas para as Mulheres. “Deve ser constituído no Ministério da Saúde um grupo de trabalho que vai analisar a proposta e tentar, a partir desse projeto, promover uma análise mais profunda dessas questões”, afirmou Télia.

O resultado das formações será entregue para a Secretaria Municipal de Saúde, para que venha a se tornar uma política pública do município. As coordenadoras acreditam que a proposta será bem recebida, visto que a Secretaria é parceira das ações. A escolha de Canoas foi devido ao trabalho já realizado pelo Coletivo Feminino Plural no Centro de Referência para Mulheres – Patrícia Esber (CRM) há cerca de quatro anos. “É uma reflexão e uma sugestão de como Canoas poderia se constituir num exemplo de política nacional de atenção à saúde das mulheres com a perspectiva de gênero, dentro dessa ideia de que Canoas tem uma ação pioneira nas questões de saúde”, afirmou Télia.

A partir do trabalho realizado no CRM, segundo Télia, foi possível perceber que as mulheres tinham dificuldades de circular na rede de atendimento e têm experiências com medicalização excessiva. Durante o encontro, uma das profissionais de saúde presentes relatou conhecer mulheres que “tomam um remédio pra dormir, um pra acordar, um pra ficar feliz”. Essa é uma das preocupações que foram expostas durante as formações: a quantidade de mulheres que apenas se medicaliza, mas não faz o tratamento contínuo que seria necessário para seu problema.

No encontro, além de ser apresentado o relatório final sobre a formação, também foi exibido um documentário sobre saúde mental e gênero, com depoimentos de mulheres que vivem ou viveram sofrimento psíquico e de profissionais que atuam em serviços em Canoas e especialistas. O filme foi dirigido por Mirela Kruel.

Fonte: Sul21, publicado em 07/07/2015.

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