Religião e política: o Estado refém do multiculturalismo?

Antonio Cruz / Agência Brasil
Créditos da foto: Antonio Cruz / Agência Brasil

Marcelo Gruman, Carta Maior – A secularização na política marcou o surgimento do Estado Moderno, implicando na separação entre Estado e Igreja. Com a desregulação estatal da religião do aparato jurídico-político, o Estado adquire autonomia em relação ao grupo religioso ao qual se aliava, torna o Direito autônomo e supremo em relação às outras formas de ordens normativas, relegando-as ao segundo plano e mesmo as desqualificando. Ao monopolizar a criação e a imposição das leis e deter o monopólio legítimo dos meios de repressão, o Estado liberal republicano assegura o direito à liberdade religiosa, ao livre exercício dos cultos e dos grupos religiosos à isenção fiscal. Com sua secularização, o Estado passa a garantir legalmente livre exercício dos grupos religiosos, concedendo-lhes, pelo menos no plano jurídico, tratamento isonômico. A proteção estatal à liberdade religiosa possibilita, dessa forma, tanto a mudança de religião conforme as preferências pessoais dos indivíduos, quanto à formação de novos grupos religiosos. O indivíduo passa a ter o direito legal de construir sua identidade religiosa como bem entender, premissa fundamental para a compreensão do que se chama sincretismo religioso no Brasil.

A autoridade concedida ao Estado brasileiro como único e legítimo mediador das relações entre religiões ou grupos religiosos no país se consolida com o decreto número 119A, de sete de janeiro de 1890, sancionado pelo Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil, de autoria de Rui Barbosa, proibindo autoridades e órgãos públicos de expedir leis, regulamentos ou atos administrativos que estabelecessem a religião ou a vedassem e instituiu plena liberdade de culto e religião para os indivíduos e todas as confissões, igrejas e agremiações religiosas. Inscritas na Constituição de 1891, a separação da Igreja Católica do Estado e a instituição da plena liberdade religiosa e de culto para todos os indivíduos e credos religiosos propiciaram, no decorrer do século XX, a ascensão de um mercado aberto no campo religioso brasileiro, abrindo passagem para que, no limite, a hegemonia do catolicismo viesse futuramente a ser posta em xeque pela eficiência do proselitismo dos concorrentes.

Um dos desdobramentos da secularização do Estado é a pretensa separação entre aquilo que se pensa e faz no espaço público, em contraposição à vida no espaço privado, em casa. A princípio, a ideologia predominante no primeiro exigiria dos indivíduos o respeito a leis impessoais e universais, independente de avaliações quanto ao pertencimento a esta ou aquela identidade/grupo em particular, enquanto na segunda, as relações pessoais se estabeleceriam a partir de critérios morais e exclusivos. O mundo da política se sobreporia ao espaço público, ao passo que a religião ficaria relegada ao espaço privado, das igrejas, mesquitas e sinagogas.

No Brasil, a relação entre Estado e Igreja Católica, mesmo após a promulgação do decreto 119A de 1890, sempre foi marcada por tensões e ambiguidades no que toca à vinculação da religião católica ao Estado brasileiro e os ganhos materiais e simbólicos daí decorrentes. Já no início do processo de colonização do Brasil, o Estado português estabeleceu o catolicismo como a religião oficial, concedendo-lhe o monopólio religioso, subvencionando-o, reprimindo as crenças e práticas religiosas de índios e escravos negros e impedindo a entrada de religiões concorrentes, afetando decisivamente a definição de cidadania no período. Na condição de única religião legalmente permitida e subvencionada pelo Estado, o catolicismo era praticamente compulsório. Na medida em que não existia alternativa legal a ele, não havia liberdade religiosa nem liberdade de culto.

O que estamos vivendo, hoje, não é nem o apagamento das fronteiras entre os domínios público e privado nem inversão hegemônica (por exemplo, o espaço público sendo ocupado pela religião), mas um deslocamento expresso na crescente atividade reguladora do Estado, garantindo, por exemplo, oportunidades iguais para homens e mulheres no mercado de trabalho ou cotas nas universidades para os afrodescendentes e, por outro lado, a competição entre as diferentes religiões por maior espaço na representação política traduzida em disputas eleitorais e na frequente mobilização do sistema judiciário na resolução de questões éticas. Esta lógica pluralista permite a afirmação de identidades religiosas antes relegadas ao domínio privado, lógica esta baseada na diferença, multiplicidade de visões de mundo e na garantia de liberdade e igualdade para todos na luta por seus direitos na esfera pública. Desse modo, o Estado deixa de ser neutro perante as identidades particulares, evidenciando que a questão não é mais a separação entre Igreja e Estado, mas a separação entre religião e poder estatal.

Iniciativas como a proposta em 2003 pelo então deputado estadual do Rio de Janeiro Edino Fonseca, do Partido Social Cristão (PSC) e filiado à Assembleia de Deus, criando, no âmbito do estado do Rio de Janeiro, o programa de auxílio a pessoas que voluntariamente optarem pela mudança da homossexualidade ou de sua orientação sexual da homossexualidade, exigem do poder estatal auxílio em nome de interesses privados. Tais iniciativas carregam alguns desafios, notadamente o problema do multiculturalismo e sua tendência ao dogmatismo e essencialismo por parte das identidades religiosas em disputa, acirrando a intolerância e, no limite, estreitando a liberdade de indivíduos que não comunguem da tradição religiosa dominante.

O mais recente capítulo envolvendo Estado e religião aconteceu no início deste mês de fevereiro, com a declaração do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, referente à possibilidade de votação de projeto que legaliza o aborto no Brasil. Em entrevista ao site do jornal Estado de São Paulo, Cunha afirmou: “Vai ter que passar por cima do meu cadáver para votar (o projeto)”. Segundo O Globo, o deputado fluminense é evangélico e foi eleito para o cargo com apoio da bancada evangélica, inclusive de deputados de partidos da oposição que o preferiram por sua orientação religiosa. Esta bancada exerce forte pressão para que matérias de amparo à saúde da mulher em caso de aborto e ampliação dos direitos dos homossexuais não sejam votadas no Congresso. No ano passado, a bancada conseguiu fazer com que o governo recuasse em uma portaria que previa procedimentos no SUS para os casos de aborto legal. O fotógrafo d’O Globo captou magistralmente o momento atual que tentei descrever: atrás e acima de Cunha, pende um crucifixo na parede da Câmara dos Deputados.

As questões que se colocam, portanto, são as seguintes: serão as identidades religiosas capazes de concretizar uma cultura democrática no Brasil, ou se utilizarão da representação política como meio de estabelecer um regime intolerante? Em que medida o multiculturalismo permite a afirmação de identidades anteriormente marginais e a partir de que momento ele abre brechas para que ele próprio sirva de veículo para a intolerância, levando-se em consideração que o que se entende por direitos humanos e justiça varia de grupo para grupo, o mesmo ocorrendo com o conceito de cidadania? Se admitirmos que o multiculturalismo a serviço da afirmação de interesses privados no âmbito do Estado não é necessariamente nocivo, contanto que estes interesses não impliquem na perda de direitos de outros grupos também interessados em legislar em causa própria, como balancear este emaranhado de vozes?

Fonte: Carta Maior, publicado em 17 de março de 2015.

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