Violência doméstica: 30% das 750 usuárias de Centro de Referência de Canoas tiveram que deixar suas casas, mostram os dados

Centro de Referência para Mulheres Vítimas de Violência Patrícia Esber é um serviço municipal que integra a rede de atendimento às mulheres de Canoas/RS desde 27 de setembro de 2011. Sua função é de acolher as mulheres que buscam romper com situações de violência, ofertando atendimento integral. Conta com uma equipe multidisciplinar das áreas de Psicologia, Direito e Serviço Social, que aplica um modelo de atenção baseado na Norma Técnica de Uniformização dos Centros de Referência desenvolvida pela Secretaria de Políticas para as Mulheres do Governo Federal. A responsabilidade pela implantação desse serviço compete à organização não governamental Coletivo Feminino Plural, contratada pela Prefeitura, que oferta sua experiência em políticas públicas de gênero. A entidade elaborou a metodologia do Centro de Referência e vem desenvolvendo estudos sobre essa experiência, que ao longo de 22 meses atendeu a cerca de 750 mulheres no serviço especializado.

Balanço recente realizado pela Coordenação do Projeto, com base no banco de dados do Centro de Referência Patrícia Esber demonstra que 95% das usuárias do serviço relatam ter sofrido alguma forma de violência, predominando a violência psicológica. No entanto, em sua grande maioria essa violência está combinada com outras manifestações, como as agressões físicas, sexuais e morais, bem como patrimoniais. Nesse último caso, os agressores retiveram, subtraíram ou destruíram, parcial ou totalmente instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e dinheiro das mulheres. Denunciados ao Judiciário, apenas seis foram condenados.

Segundo o levantamento, os agressores são parceiros íntimos (maridos, namorados, companheiros ou ex) em 77,5% dos casos, o que evidencia desigualdade de gênero nas relações de afeto e convivência. As agressões mais frequentes registradas na Delegacia da Mulher de Canoas foram de ameaça e lesão corporal, havendo relatos de violência sexual, cárcere privado, tortura e tentativa de homicídio. Em 56% dos casos, a equipe técnica do serviço identificou como “risco grave ou gravíssimo” a situação da mulher, e cerca de 30% delas tiveram que deixar suas casas como medida de segurança. Duas dezenas foram encaminhadas à Casa Azul, abrigo para mulheres em risco de morrer mantido pela Prefeitura de Canoas.

Quanto às vítimas, o Banco de Dados do Centro de Referência Patrícia Esber revela que embora mulheres de todos os níveis sociais sejam atingidas pela violência, as que buscam o serviço vem de contextos de vulnerabilidade socioeconômica, residindo em bairros populares de Canoas. Muitas delas – 54% – apenas tem o primeiro grau completo ou incompleto, embora mulheres com elevada escolaridade também tenham procurado atendimento.

Trabalhando majoritariamente em prestação de serviços, 55% das usuárias do Centro de Referência possuem alguma renda, sendo essa a principal fonte de recurso familiar, mas 70% de todas as usuárias convivem com dificuldade de acesso a serviços e não estavam vinculadas a programas assistenciais ao chegar no serviço de acolhimento, o que passou a ocorrer  no processo de atendimento às suas múltiplas demandas na tentativa de reconstruir suas vidas. O serviço atua em rede, e dessa forma acessa programas sociais e articula ações.

Ao analisar o perfil etário dessas mulheres, constata-se que em todas as idades elas são alvo da violência baseada no gênero, prevalecendo as que estão em idade reprodutiva (18 a 45 anos) que são 70% das usuárias do serviço. No entanto, mulheres com 60 anos ou mais também procuram ajuda, a maioria delas relatando histórico de violência continuada por décadas, desde o período da juventude, vindo a denunciar após a existência de um serviço especializado.

Embora não se possa precisar que a violência seja a causa direta do adoecimento dessas mulheres, o levantamento identificou uma elevada queixa de sofrimento psíquico, como depressão, ansiedade, síndrome do pânico, bem como doenças do aparelho digestivo, transtornos hormonais, infecções por HIV, abortos inseguros, entre outras identificadas pela Organização Mundial da Saúde como impactos da violência contra as mulheres.

 Desafios identificados

 “Há falhas na Lei Maria da Penha, muita coisa tem que mudar” (usuária do CRM).

O Coletivo Feminino Plural vem desenvolvendo estudos e análises sobre as políticas públicas para o enfrentamento à violência tendo como referência os marcos de direitos humanos das mulheres elaborados nas últimas décadas. Estas reflexões reafirmam o papel estratégico das políticas públicas na prevenção, enfrentamento e eliminação das desigualdades de gênero que justificam a violência contra as mulheres. Os dados obtidos nesse levantamento, juntamente com as falas das usuárias do Centro de Referência permitem apontar alguns pontos de estrangulamento na implementação dessas políticas.

  • É um pressuposto, para o Coletivo Feminino Plural o cumprimento integral da Norma Técnica de Uniformização dos Centros de Referência como um objetivo permanente. Isto significa primar pela qualidade do atendimento, a capacitação das profissionais, o trabalho em rede. Assim como é um princípio ético atuar de forma a nunca colocar as mulheres em maior risco do que já se encontram, acreditando em sua palavra e explicitando posição contrária a toda e qualquer forma de violência. Ao rejeitar os estereótipos que apresentam mulheres como “desistentes” e “reincidentes”, a entidade alerta para os fatores de descrédito na possibilidade de fazer justiça e no lugar desigual destinado às mulheres na sociedade. Alerta, sobretudo, para a insuficiência das políticas públicas e das lacunas especialmente identificadas no poder judiciário. “Fui humilhada pelos policiais quando disseram, tu aqui de novo?” (usuária do CRM).
  • Sabe-se hoje que a existência de leis encoraja a busca de ajuda para cessar a violência. No entanto, é indispensável a implantação de serviços qualificados e articulados que possam garantir a efetiva ruptura  com a violência, criando perspectivas de uma nova vida para essas mulheres. A construção de redes especializadas, somadas às redes setoriais tem sido um investimento dos poderes púbicos, no entanto aquém da verdadeira demanda por justiça.
  • O déficit no campo do judiciário vem configurando uma lacuna na responsabilização dos agressores, o que colabora com o descrédito em todos os esforços, ao mesmo tempo em que reforça padrões de comportamento baseados na impunidade. Ao mesmo tempo em que são imprescindíveis as medidas protetivas, o seu descumprimento pelos agressores é uma evidência da fragilidade dos mecanismos. Quando necessárias novas medidas mais rigorosas, a sua demora tem produzido maior exposição das mulheres, gerando também mais descrédito. É urgente aproximar os tempos da denúncia feita pelas mulheres com a justiça esperada por elas. “Não é a gente que tem que ser engaiolada, é o agressor” (usuária do Centro de Referência Patrícia Esber).
  • O estudo demonstra que a metade das mulheres trabalha e temem perder emprego, levando-as a abdicar da proteção da casa abrigo; ou deixam de frequentar atendimento psicológico por falta de tempo; deixam de percorrer o caminho da denúncia para não faltar ao trabalho, o que criaria maior estigma em torno de si mesmas como vítimas de violência.  A regulamentação do artigo 9º da Lei Maria da Penha permitiria maior persistência.
  • No caso da violência sexual, os serviços de saúde precisam ser melhor qualificados para realizar o atendimento não discriminatório, de acordo com a nova lei sancionada pela Presidência da República. Em especial no tocante à interrupção da gestação, pois é um procedimento negado por muitos estabelecimentos que alegam objeção de consciência.

Fonte: http://www.campanhapontofinal.com.br/
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Trabalho elaborado com base no Banco de Dados do Centro de Referência Patrícia Esber, de Canoas/RS, coordenado pelo Coletivo Feminino Plural. Agosto de 2013. Informações: 34640706, 32215298, 98315882, 81003878

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