Leilane Menezes e Helena Mader/Correio Braziliense – Uma linha imaginária divide as duas áreas do Porto de Manaus: de um lado, há pequenos e malcuidados barcos, usados para transportar populações ribeirinhas, superlotados e, às vezes, sem documentação. Do outro, ficam ancorados os luxuosos navios estrangeiros, recebidos com festa. Empolgados, os turistas internacionais desembarcam na capital do Amazonas em transatlânticos com capacidade para até 3 mil pessoas. Não raramente, são recepcionados por banda marcial da Marinha e, antes de deixar o terminal, param em quiosques de artesanato armados especialmente para recebê-los, onde podem comprar joias e produtos regionais, como bijuterias feitas de sementes da Amazônia.
Ao cruzar o portão das docas, os visitantes enxergam um lado nada festivo de Manaus. A feira, a poucos metros do desembarque, apresenta uma capital que rifa a infância de suas meninas. Garotas entre 10 e 17 anos, com o corpo à mostra e os pés calçados em chinelos velhos, passeiam em meio às barracas de frutas, peixes e verduras, com blocos de papel nas mãos ou nos bolsos. De acordo com o Conselho Tutelar de Manaus, meninas são usadas como iscas por comerciantes, às vezes os próprios pais, para atrair fregueses. Quando homens se aproximam, além de oferecer os produtos, elas vendem um bilhete por R$ 5. Quem compra tem o nome incluído em uma lista. Se for sorteado, o “prêmio” é uma noite de sexo com uma das participantes do esquema.
Enquanto metade do grupo trabalha com a venda da rifa, o restante atende os sorteados da semana anterior. O dinheiro arrecadado é dividido igualmente entre elas. O Conselho Tutelar de Manaus recebeu denúncias sobre a existência do esquema criminoso de venda de rifas sexuais. Conselheiros observaram o movimento, entrevistaram os envolvidos e constataram a existência do jogo de azar que tem meninas como prêmio. “O falso prêmio é um eletrodoméstico. Isso serve apenas como disfarce para o esquema. Apreendemos o caderno com a lista de clientes e eram somente homens adultos. Temos depoimentos de testemunhas. O sexo aqui é vendido por R$ 5. Fazendo rifa, elas descobriram uma maneira de ganhar mais”, afirma Clodoaldo Santos, conselheiro tutelar em Manaus.
Série especial de reportagem mostra infância esquecida nos portos da Copa
Ao desembarcar de transatlânticos para assistir aos jogos da Copa do Mundo, os turistas vão se deparar com o abandono da infância brasileira. Nos portos das cidades sedes do mundial de futebol, meninas seminuas vendem os corpos em troca de um prato de comida. Garotos franzinos carregam malas e vendem bugigangas para sobreviver. Jovens moradores de rua fumam crack à beira-mar para tentar fugir da rotina de desamparo e de desespero. O governo modernizou a estrutura das regiões portuárias, mas não conseguiu acabar com a violação dos direitos das crianças nessas áreas. Os terminais marítimos e fluviais de todo o Brasil são pontos para a exploração sexual de adolescentes, o trabalho infantil e o uso de drogas.
A equipe do Correio viajou 8 mil quilômetros e visitou quatro capitais para conhecer a realidade de quem vive em áreas onde o crescimento econômico nem sempre é sinônimo de avanço social. Hoje e nos próximos três dias, o jornal publica a série de reportagens Cais do abandono, que mostrará os principais abusos sofridos por crianças e adolescentes em regiões portuárias.
O governo federal estima em R$ 33 bilhões os investimentos em infraestrutura realizados para a Copa em todas as sedes. Já o repasse para o combate à exploração sexual infantil ficou em R$ 1,3 milhão em 2013— o equivalente a 0,03% da despesa total em obras. Do total de gastos em infraestrutura, R$ 499 milhões foram reservados para a reforma e a construção de terminais portuários.
Em Manaus, nos fins de semana, casas de palafitas vizinhas ao porto transformam-se em bares, onde garotas consomem drogas e vendem sexo a R$ 10. Homens buscam meninas em jet skis, para levá-las aos pontos de exploração. Barcos proibidos de circular por falta de documentação são usados como motéis, para onde são levadas as jovens aliciadas. “Há dezenas de embarcações ancoradas, sem poder navegar, mas, em vez de resolver o problema, os donos transformaram em motel, cobrando R$ 40 por hora”, afirma Clodoaldo Santos, conselheiro tutelar em Manaus.
Publicado em 13 de abril de 2014 – Monitoramento Cedaw.