Paraíba – Não faz sentido o que tem sido noticiado sobre o “clube do carimbo”, os soropositivos que transmitem propositalmente o HIV, “carimbando” sua vítimas com o vírus e instruindo outros sobre como fazê-lo também, perfurando ou retirando a camisinha sem que seus parceiros percebam. Essa notícia já estampou a imprensa on-line, impressa e, agora, chegou também à tela das emissoras de televisão.
Eu, como uma pessoa que vive com HIV, gostaria que notícias como essa destacassem que o perfil de transmissor intencional do HIV não é o perfil de todo o soropositivo. Não é o meu perfil e sei que não é o da esmagadora maioria das pessoas que vivem com HIV. Mas, se existem pessoas que transmitem propositalmente o HIV, é natural que virem notícia, mesmo que estes sejam uma minoria, um grupo extremamente restrito. Não é preciso que seja atitude de uma maioria para que algo vire notícia. Não é isso o que estabelece a relevância e a seleção dos editores para o que vai ou não para a capa dos jornais. Ao contrário: uma das medidas para algo virar notícia é o inesperado, a exceção. Por isso, eu reconheço que o meu desejo de ter uma nota de rodapé que esclareça a generalização não é mais que vaidade, porque é desnecessário.
É evidente que os soropositivos do “clube do carimbo” não representam todos os soropositivos. Assim como é evidente que o Estado Islâmico não representa os muçulmanos de todo o mundo. Que os indianos que estupram mulheres não representam todos os seus conterrâneos. Que os policiais truculentos não representam todos os policiais. E assim por diante. Tendo o bom senso como medida, não é preciso sempre esclarecer a generalização. Seria chato demais sempre ler e assistir notícias assim. O evidente não preciso ser sempre dito. Para você, um leitor com algum esclarecimento, repetir o que é óbvio não é um insulto à sua inteligência?
Uma eventual generalização ou a falta de uma nota de esclarecimento não torna as notícias sobre o “clube do carimbo” ruins ou incompletas. O que faz delas notícias ruins e incompletas são outras razões, que não a generalização. Uma boa notícia sobre qualquer tema responde às perguntas: o quê?, quem?, quando?, onde?, como? e por quê? No que tem sido noticiado sobre o “clube do carimbo”, faltam respostas para duas dessas perguntas.
A primeira é como? Qualquer pessoa com um entendimento mínimo sobre HIV/aids faria uma pergunta que foi deixada para trás, negligenciada. Nenhum dos veículos de imprensa, até agora, se preocupou em questionar: afinal, estes soropositivos que transmitem intencionalmente o HIV não cuidam da própria saúde?
O tratamento antirretroviral é o tratamento essencial para todo soropositivo manter-se vivo e saudável. Sem ele, estamos literalmente mortos. Comparado ao tratamento disponível no começo da epidemia, hoje esse tratamento é simples e eficaz. Quando feito de maneira consistente, é capaz de reduzir a quantidade de vírus no sangue, a carga viral, até um nível indetectável, mesmo nos exames mais precisos de laboratório. Segundo o último Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, 78% das pessoas que vivem com HIV e fazem tratamento antirretroviral no Brasil apresentam esse perfil: carga viral indetectável.
Uma das consequências do tratamento e da carga viral indetectável é que o risco de transmissão do HIV é reduzido em pelo menos 96%, mesmo em caso de falha no uso da camisinha. Esse número é uma estimativa matemática, baseada em estudos que reuniram, até agora, mais de 9 mil casais sorodiscordantes — quando só um dos parceiros é positivo para o HIV — e que optam, deliberada e consensualmente, por não fazer uso consistente do preservativo. Nesses estudos, nunca foi documentado um único caso sequer de transmissão do HIV a partir de quem é soropositivo, faz tratamento antirretroviral e tem carga viral indetectável.
“Não existe, na história da epidemia, um único caso registrado de transmissão do HIV a partir de quem foi diagnosticado, faz tratamento e tem carga viral indetectável. Simplesmente isso não foi documentado na literatura médica até hoje”, explica o Dr. Esper Kallás, médico infectologista. “Ou seja: o controle da carga viral no sangue também controla a carga viral nas secreções genitais.”
Incluir essa informação a respeito da redução na transmissibilidade dentro do que tem sido noticiado sobre o “clube do carimbo” é muito importante, porque, se algum dos soropositivos desse clube faz tratamento antirretroviral, tem carga viral indetectável e, mesmo assim, transmitiu o HIV, será o primeiro caso na história da epidemia. É muito importante que este caso seja verificado e documentado porque isso pode mudar o curso mundial da política de prevenção de HIV/aids.
Consensos médicos americano, britânico, canadense e sueco, entre outros, já atualizaram suas diretrizes de tratamento e prevenção com base no que tem sido observado até então. Nesses consensos, o uso correto e consistente da camisinha continua fundamental. Entretanto, é importante saber que, em caso de falha em seu uso, os antirretrovirais também têm um papel de enorme importância na prevenção da transmissão do HIV. As últimas orientações sobre prevenção da transmissão com soropositivos publicadas pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) americano, por exemplo, já incluem recomendações sobre a relação sexual desprotegida programada, como uma alternativa segura para casais sorodiscordantes que desejam ter filhos. Para os britânicos, quem é exposto aos fluidos de uma pessoa com carga viral indetectável não precisa fazer profilaxia pós-exposição (PEP), a medida emergencial de prevenção ao HIV que pode ser adotada em até 72 horas a contar de uma possível exposição ao vírus.
No último mês, a Unaids divulgou uma nota celebrando as últimas evidências na redução da transmissibilidade oferecida pelos antirretrovirais; uma delas, observada num estudo africano, conduzido recentemente no Quênia e Uganda e que reuniu 1.013 casais sorodiscordantes. Neste estudo, também não foi documentado um único caso sequer de transmissão a partir do parceiro positivo para o HIV que estava em tratamento e tinha carga viral indetectável.
Se as estimativas científicas e os consensos médicos de vários países estão corretos, o mais provável é que, se ocorreu alguma transmissão a partir de um integrante do “clube do carimbo”, este indivíduo precisou, antes, negligenciar a própria saúde, recusando o tratamento que é essencial para manter-se vivo — o coquetel antirretroviral. Nesse caso, não muda o fato de que houve transmissão intencional do vírus, o que é abominável. Mas fala algo importante a respeito do indivíduo envolvido na história, causador da transmissão, e suscita a segunda pergunta não respondida no que tem sido noticiado a respeito do “clube do carimbo”: por que alguém negligenciaria a própria saúde para transmitir uma doença incurável?
Na televisão, frente a frente com pessoas que assumem ser “carimbadores”, o repórter não fez essa pergunta. Uma dessas pessoas afirma “ter o vírus controlado”, fazendo presumir que faz tratamento adequado e o que levanta outra pergunta não respondida no que tem sido noticiado: será que de fato ocorreram transmissões intencionais a partir de indivíduos como este ou houve o desejo de transmitir, sem a sua concretização? Embora as duas sejam atitudes repudiáveis, a primeira consiste no ato consolidado e não apenas o desejo de cometê-lo. Se de fato houve a concretização de uma transmissão intencional, temos o perfil muito nítido de alguém que negligencia a própria saúde e então viola o preservativo sem o consentimento do parceiro, com a intenção de transmitir o vírus.
Se indivíduos com o perfil do “clube do carimbo” existem, eles certamente não são responsáveis pela maior parte das transmissões de HIV. Em 2009, 91,5% das infecções que ocorreram nos Estados Unidos foram adquiridas a partir de pessoas que não sabiam ter HIV ou que não estavam em tratamento antirretroviral, de acordo com uma análise dos dados de transmissão daquele país, publicada no jornal Jama Internal Medicine. Comparadas com portadores do HIV não diagnosticados, as pessoas diagnosticadas mas sem acompanhamento médico se mostraram 19% menos propensas a transmitir o HIV, enquanto pessoas com carga viral indetectável se mostraram 94% menos propensas a transmitir o HIV.
Segundo a Unaids, “a epidemia de HIV é nutrida pelas infecções por HIV não diagnosticadas e não pelas pessoas que conhecem seu status positivo para o HIV.” A organização também divulgou hoje uma nova nota, em que “expressa preocupação com as recentes notícias divulgadas na imprensa sobre possíveis casos de transmissão intencional do HIV, considerando seu impacto no aumento do estigma e preconceito relacionados ao HIV e as pessoas que vivem com o vírus. O papel da imprensa é o de informar e promover debate sobre as questões importantes para a sociedade. Portanto, convidamos a imprensa e toda a sociedade a discutir a questão do HIV de forma clara e imparcial, sem estigmas ou preconceitos.”
Fonte: Paraíba, publicado em 18 de março de 2015.