Na Década Internacional de Afrodescendentes, em que as Nações Unidas vão focar no desenvolvimento e promoção de ações voltadas para esta população em todo o mundo, uma instituição brasileira quer expor uma visão ainda pouca abordada sobre o racismo: como as mulheres negras percebem a influência deste mal sobre sua rotina e, principalmente, sobre sua saúde? Para dar voz a ela em primeira pessoa, a ONG Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), sediada no Rio Grande do Sul, realiza a pesquisaPercepção das Mulheres Negras sobre os efeitos do racismo em suas vidas, contemplada noPrêmio Lélia Gonzalez, concedido pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República. Iniciativa do Instituto AMMA Psique e Negritude, de São Paulo, e da Associação Cultural de Mulheres Negras (Acmun), também gaúcha, o estudo está envolvendo representantes de todas as regiões do País e vai se transformar em um instrumento que sirva de base para a criação e o fortalecimento de políticas de igualdade racial e de gênero. Coordenadora da pesquisa, a psicóloga Simone Cruz, falou ao Portal DSS Nordeste sobre como o trabalho está sendo desenvolvido.
O que motivou a AMNB a elaborar essa pesquisa? Quais os principais objetivos?
O que nos motivou a realizar esta pesquisa foi o fato de, inicialmente, por já trabalhar com saúde mental e durante muito tempo, Maria Lúcia da Silva, psicóloga do AMMA, observar aspectos subjetivos do racismo que causam sofrimento nas mulheres negras. Por outro lado, eu, Simone Cruz, também psicóloga, mas atuando no campo da saúde coletiva, observo que as organizações de mulheres negras e do movimento negro atuam no âmbito político e não percebem, ou têm dificuldades em trabalhar com questões de saúde mental. Então, poder ouvir das mulheres suas necessidades nesta área, saber quais estratégias podemos lançar mão para dar conta desta demanda e contribuir com as mulheres negras tanto em sua individualidade quanto na coletividade foram nossas principais motivações.
Qual a abrangência e o tamanho da amostra do estudo?
Em cada região do País, são 20 mulheres negras, ativistas e não ativistas, autodeclaradas heterossexuais e lésbicas, de níveis de escolaridade diferenciados, de religiões diferentes em todas as regiões do Brasil, totalizando uma amostra de 100 mulheres negras em todo o Brasil. As cidades eleitas para realização da pesquisa foram definidas pela identificação de uma organização de mulheres negras local, filiada à AMNB, que pudesse apoiar a realização do trabalho, tanto no aspecto da logística quanto da indicação das mulheres participantes. Iniciamos o trabalho de campo pela Região Sudeste, em São Paulo, seguimos para o norte na cidade de Mazagão Novo, no Amapá e, posteriormente, no Nordeste, na cidade de Salvador. Nossa próxima oficina se realizará na cidade de Viamão, Região Metropolitana de Porto Alegre. Finalizaremos o trabalho de campo com a Região Centro-Oeste. Faz parte da metodologia a realização de em profundidade, cujo conteúdo será articulado com aspectos capturados durante o grupo.
Quais são as etapas do estudo e o cronograma?
O estudo conta com a participação de três pesquisadoras da Universidade Estadual da Bahia (UNEB) e da Psicanalista Marília Carvalho Soares. Além das coordenadoras, Simone Cruz (ACMUN/RS) e Maria Lúcia da Silva (AMMA/SP), filiadas a Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), que também atuam como pesquisadoras.
Iniciamos o trabalho com um alinhamento teórico entre as pesquisadoras e com planejamento das etapas e dos produtos da pesquisa. O estudo se baseia na realização de cinco grupos focais, que são grupos de vivências, em que a metodologia adotada permite que as mulheres falem em primeira pessoa, proporcionando um desprendimento do externo por alguns momentos e olhando para si. Trabalhos na perspectiva do cuidado e do autocuidado. A análise dos resultados será iniciada após a realização de todas das oficinas nas cinco regiões brasileiras e os resultados serão publicados através de um livro e de um vídeo.
Havia alguma pesquisa semelhante no País?
Não tenho conhecimento.
A pesquisa ainda está em curso, mas como a AMNB avalia essa percepção das mulheres negras nos dias de hoje?
O andamento da pesquisa tem nos mostrado que são várias as formas tanto como percebem a expressão do racismo em suas vidas, assim como suas reações diante destas manifestações. Essa pesquisa tem dado a dimensão de sofrimentos psíquicos decorrentes da violência do racismo e das estratégias que as mulheres negras têm construído seja para o enfrentamento seja para o autocuidado. Temos percebido que o racismo afeta diretamente em questões que são expressadas no corpo e na sexualidade, na ascensão escolar, dentre outros aspectos.
A associação consegue enxergar diferenças entre as percepções das diferentes regiões do País? Como é no Nordeste?
Inicialmente não podemos afirmar que existem diferenças nas percepções, mas sim na maneira de como vivenciam o racismo à partir das diferenças e das especificidades culturais e territoriais. O fato de estarmos trabalhando nas cinco regiões não nos permite dizer como é cada região como um todo. É possível falarmos de como vivenciam naquele estado escolhido. No Nordeste, elegemos Salvador, e é do grupo que trabalhamos nesta cidade que podemos falar. Isso não significa que este grupo representa a Região Nordeste como um todo.
De um modo geral, considerando o que é reproduzido no cotidiano das pessoas e na mídia, como esse sentimento é captado e reproduzido para a sociedade?
A partir do que é reproduzido na mídia podemos verificar que as mulheres negras não se veem identificadas com este espaço, uma vez que raramente são representadas em condições de igualdade. Essa condição permite que as mulheres negras sintam-se desvalorizadas causando, consequentemente, baixa autoestima, depressão, dentre outros sentimentos que levam ao adoecimento. Penso que, na maioria das vezes, esse sentimento vivenciado pelas mulheres negras não é captado para a sociedade de maneira capaz de minimizá-lo; ao contrário, o fortalece.
Além da pesquisa, quais seriam os melhores canais para dar voz a essa percepção?
Um dos aspectos que estamos trabalhando na pesquisa é o das políticas públicas. Compreendemos que esta pesquisa irá contribuir para uma melhor percepção dos movimentos sociais, gestores e da sociedade em geral sobre as mulheres negras. Entendemos ainda que a mídia é um canal estratégico para dar voz à percepção das mulheres negras sobre o racismo que vivenciam, a partir de sua própria voz, ou seja, na primeira pessoa.
A AMNB enxerga alguma conexão entre como as mulheres negras percebem o racismo nas suas vidas e a saúde dessas mulheres? Como se dá essa relação?
Sim, esta conexão está diretamente relacionada à saúde. A percepção das mulheres negras em relação ao racismo que vivenciam cotidianamente afeta a saúde mental. Como citei anteriormente, as marcas do racismo podem ser expressas através do corpo, em relação a dificuldades com a sexualidade, etc.
Que encaminhamentos a AMNB dará aos resultados da pesquisa?
Buscaremos apresentar os resultados da pesquisa em âmbito nacional. Pretendemos que esta pesquisa incida no fortalecimento e gestão das políticas públicas de igualdade racial, para as mulheres na saúde, educação, planejamento, segurança, habitação e outras áreas.
Simone Cruz é psicóloga, mestre em saúde coletiva. Secretaria Executiva da AMNB, coordenadora da Associação Cultural de Mulheres Negras (ACMUN) e coordenadora da Pesquisa Percepções das Mulheres Negras sobre os efeitos do racismo em suas vidas
Fonte: DSS Brasil, entrevista realizada em 29/07/2015.