O Conselho Estadual de Direitos Humanos do RS, do qual fazemos parte, se manifesta sobre o encerramente precoce da exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, exibida no museu Santander Cultura, na Capital, por pressão de setores conservadores e do movimento de direita Movimento Brasil Livre (MBL).
“O encerramento da exposição “Queermuseu”, da forma como foi feito, se insere em um contexto mais amplo de violações e agressões, em que se assiste a movimentos que pretendem calar ideias e reprimir manifestações com violência, mediante a manipulação de fatos por parte dos meios de comunicação, tal como ocorreu no período da Ditadura Civil-Militar no Brasil. A cada dia, o CEDH-RS acolhe diversas denúncias de violência contra mulheres, população LGBT, negros/as, indígenas, quilombolas, pessoas sem-teto, enfim, todas as populações em situação de vulnerabilidade e que vivem violações cotidianas de seus direitos. O país vive um período de violações de direitos fundamentais, como o acesso à saúde, alimentação, educação, moradia, trabalho digno, à cultura e ao lazer.”
Leia a nota de repúdio abaixo:
O Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (CEDH-RS) se soma às manifestações de repúdio diante dos fatos que levaram ao encerramento precoce da exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, no Santander Cultural, em Porto Alegre, RS, em 10 de setembro de 2017. Esta exposição propunha uma necessária reflexão sobre questões de gênero, sexualidade, poder, opressão, oferecendo para tanto um conjunto de obras de importantes artistas contemporâneos.
São preocupantes os ataques que ocorreram contra visitantes, funcionários e funcionárias do Santander durante a exposição, e as acusações feitas por carta e e-mail às obras e a artistas da mostra. Mas ainda mais preocupante é o fato de o Santander Cultural ter acolhido o pedido de encerramento da exposição antes do seu final, previsto para 8 de outubro de 2017. Ao aceitar tal atitude, o Santander Cultural não somente abriu um perigoso precedente para outras ameaças e discursos de ódio e intolerância da parte de quem é contra os direitos humanos e a democracia – pois ataca a liberdade de expressão e o respeito à diversidade – como, ao assim proceder, assumiu também para si tal posição e as consequentes responsabilidades que dela advêm, não sendo suficiente a devolução dos recursos públicos disponibilizados para tanto, dado que rompeu unilateralmente com um compromisso público assumido, ao mesmo tempo em que reforçou o discurso de ódio e o preconceito, vedados em uma sociedade democrática.
O encerramento da exposição “Queermuseu”, da forma como foi feito, se insere em um contexto mais amplo de violações e agressões, em que se assiste a movimentos que pretendem calar ideias e reprimir manifestações com violência, mediante a manipulação de fatos por parte dos meios de comunicação, tal como ocorreu no período da Ditadura Civil-Militar no Brasil. A cada dia, o CEDH-RS acolhe diversas denúncias de violência contra mulheres, população LGBT, negros/as, indígenas, quilombolas, pessoas sem-teto, enfim, todas as populações em situação de vulnerabilidade e que vivem violações cotidianas de seus direitos. O país vive um período de violações de direitos fundamentais, como o acesso à saúde, alimentação, educação, moradia, trabalho digno, à cultura e ao lazer.
O respeito às regras e princípios constitucionais e convencionais, especialmente no campo dos direitos fundamentais e direitos humanos, é obrigação não somente do Estado mas também de toda a sociedade, trate-se de relações de caráter público ou privado. No presente episódio, tanto os/as manifestantes que atacaram a exposição e as pessoas que a frequentavam, funcionários e funcionárias, como, ao fim, junto com tais manifestantes, o próprio Santander Cultural, ao acolher tais manifestações de ódio e, explicitamente concordando com seus fundamentos em nota pública – que ao fim acaba por atacar os próprios e as próprias artistas e Curador -, agrediram as disposições da Constituição Federal de 1988, especialmente em seus artigos 5º caput e seu inciso IX, 215 caput e seu parágrafo primeiro, 216, incisos I, II e IV, 220 e seu parágrafo segundo. Também agrediram os artigos 1º, 220 e 221, inciso I, da Constituição do Estado Rio Grande do Sul.
Violaram o artigo 19º do Pacto Internacional dos Direitos Civis E Políticos da ONU (PIDCP), o artigo 15 do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU ( PIDESC),o artigo 4º da Declaração Americana do Deveres e Direitos do Homem de 1948 e o artigo 13 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Sobre tal artigo da Convenção Interamericana, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) no caso “ A Última Tentação de Cristo”(Olmedo Bustos e outros) vs. Chile, acompanhando a manifestação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) na sentença do caso de censura em que o Estado do Chile, proibira a exibição do filme “A Última Tentação de Cristo”, afirma em seu parágrafo 61, c, que “…o dever de não interferir no desfrute do direito de acesso à informação de todo tipo se estende “à circulação de informação e à exibição de obras artísticas que possam não contar com o beneplácito pessoal de quem representa a autoridade estatal em um dado momento”; e mais adiante, em seu parágrafo 69, citando trecho de sentença do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, aponta que “ [a] função supervisora [do Tribunal lhe] exige […] prestar extrema atenção aos princípios próprios de uma ‘sociedade democrática’. A liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de tal sociedade, uma das condições primordiais para seu progresso e para o desenvolvimento dos homens. O artigo 10.2 [da Convenção Europeia de Direitos Humanos] é válido não apenas para as informações ou ideias que são favoravelmente recebidas ou consideradas como inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que chocam, inquietam ou ofendem o Estado ou uma fração qualquer da população. Estas são as demandas do pluralismo, da tolerância e do espírito de abertura, sem as quais não existe uma ‘sociedade democrática’. Isso significa que toda formalidade, condição, restrição ou punição imposta na matéria deve ser proporcional ao fim legítimo que se persegue (Cf. Eur. Court H.R., Handyside case, judgment of 7 December 1976, Series A Nº 24, par. 49).”.
A arte sempre foi um canal e uma forma de resistência, para questionar e deflagrar a ordem hegemônica ancorada nos diversos dispositivos de controle social e político. Uma de suas funções é justamente tensionar a rigidez da hegemonia e desestabilizar formas de pensamento cristalizados. Através da arte as pessoas podem se dar conta das diferentes produções discursivas e diversas instâncias de poder que organizam a (s) verdade (s). Através da arte é exercitado o direito de pensar, a chance de refletir, discutir continuamente e assumir posicionamentos acerca do mundo que queremos. Portanto, é imprescindível defender e garantir o direito de todas e todos de exercer um ativismo pela existência, para além dos diagnósticos e normatizações dos espaços circunscritos. Se existe controvérsia a respeito das obras, que ela sirva para o debate e a reflexão construtiva.
Porto Alegre, 12 de setembro de 2017.
PAULO CÉSAR CARBONARI
Presidente CEDH-RS