Texto de Clair Castilhos – O Estatuto do Nascituro é um tema que merece ser abordado sob vários aspectos. É um assunto multifacetado e que revela uma das mais profundas heranças misóginas de nossa sociedade patriarcal, capitalista, judaico-cristã. Remete à tentativa milenar de dominar o corpo e a sexualidade das mulheres utilizando valores para o disciplinamento da vida das pessoas que são impostos através da culpa e do pecado. Nesta perspectiva é necessário entender e interpretar o que se esconde atrás de um discurso hipócrita, pretensamente ético e em defesa da vida. Esta pregação, falsa e oportunista, resulta em pressões e ações concretas no interior do Poder Legislativo, na intimidação do Poder Executivo e no questionamento quanto aos pequenos avanços obtidos junto ao Poder Judiciário.
Um exemplo de ameaça ao Poder Judiciário é a proposta de emenda constitucional que garante às igrejas a arguição de constitucionalidade frente ao Supremo Tribunal Federal.
As relações com o Poder Executivo são, na maioria das vezes, a barganha pelo apoio nas votações de projetos de interesse do governo, na distribuição de ministérios, no comércio de benesses entre seus correligionários. O governo, em geral se rende com o argumento da necessidade de “governabilidade”!
As iniciativas mais agressivas e impactantes, no entanto, ocorrem no âmbito do Poder Legislativo. Cabe destacar o “estatuto do nascituro/bolsa estupro”, a CPI do aborto, a “Cura gay” entre outras.
No dia 24 de Abril de 2013, esteve na pauta da Comissão de Finanças da Câmara dos Deputados o projeto de lei nº 478/2007, que “dispõe sobre o Estatuto do Nascituro e da outras providências”.
Esse projeto baseia-se na crença de que a vida tem início desde a concepção, ou seja, antes mesmo do ovo ser implantado no útero. Visa, assim, estabelecer os direitos dos embriões – os chamados nascituros. Equipara o nascituro e o embrião humanos ao mesmo status jurídico e moral de pessoas nascidas e vivas.
O conteúdo limitante e agressivo desse projeto teria como consequência a derrubada de qualquer direito das mulheres decidirem pela interrupção da gravidez. Visa suprimir os permissivos legais, previstos no Código Penal como em caso de risco de vida da mulher, da gravidez resultante de estupro e a antecipação terapêutica do parto no caso de anomalias graves (como anencefalia) aprovada pelo Supremo Tribunal Federal.
Como observa a socióloga Maria José Rosado, coordenadora geral de Católicas pelo Direito de Decidir – Brasil referida no blog Viomundo “A proposta de dar ao nascituro um ‘estatuto’ é mais uma tentativa dos setores mais retrógrados da sociedade de impedir a efetivação dos direitos de cidadania das mulheres”(…) “Inúmeras pesquisas de opinião mostram que a população brasileira, independentemente de filiação religiosa, é majoritariamente favorável a que continuem sendo permitidos os abortos legais e é contrária a que as mulheres sejam presas por realizarem um aborto. Essa proposta, além de ferir a Constituição vigente, significaria um grave retrocesso.”
Mas, o mais odioso, um verdadeiro escárnio à dignidade das mulheres e aos direitos humanos é que o mesmo projeto ainda prevê uma bolsa para as mulheres vítimas de estupro criarem seus filhos. Esse é o vergonhoso projeto conhecido como “Bolsa Estupro”.
O Portal Vermelho – http://www.vermelho.org.br – sob o título “Bolsa estupro: conservadorismo avança em comissão na Câmara” datado de 05/06/2013 reproduz um conjunto de razões e argumentos amplamente divulgados pelos movimentos feministas e de mulheres que são incontestáveis tais as aberrações defendidas pelos fundamentalistas. Chama a atenção que “o projeto de lei, ao reconhecer a paternidade de crianças resultantes de estupro, transforma a brutalidade de uma violência sexual, um crime hediondo, em uma relação legal, gerida com o crivo do Estado, que deverá pagar a “bolsa estupro” no caso de não se reconhecer o autor do crime contra mulher. (…) Ao garantir a possibilidade de paternidade ao estuprador, o Estatuto do Nascituro está subjugando a integridade das mulheres e mais, está contribuindo para a perpetuação da violência e da impunidade, uma vez que, ao serem vistos como “pais” e não como estupradores estes homens podem vir a contar com a benevolência de uma sociedade patriarcal, que culpabiliza as mulheres, mesmo quando essas são as vítimas da violência infringida.
Com isso, o projeto de lei expõe a nós mulheres e a toda a sociedade a diferentes tipos de violência.
Uma situação aviltante é que no Brasil, mulheres e meninas sofrem cotidianamente maus-tratos e humilhações que vão desde o momento em que prestam a queixa-crime nas delegacias, nos exames de corpo de delito até o momento em que vão ser atendidas por médicos, enfermeiros e psicólogos nos hospitais. Em outras palavras, mesmo estando respaldada pela legislação para realizar a interrupção da gravidez em caso de estupro, passa por todo tipo de constrangimentos até a finalização do atendimento. Com a criminalização do aborto em caso de estupro, como prevê o Estatuto do Nascituro essa situação só se agravará!
Uma vez que não haverá mais a possibilidade de se realizar a interrupção da gravidez, muitas mulheres e meninas que sofreram a violência sexual poderão desistir de prestar a queixa-crime contra o agressor, já que este ato, em si, é para elas, um ritual de humilhações. Ou seja, se aprovado, o Estatuto do Nascituro também irá contribuir para que as estatísticas de estupro diminuam, quando na realidade este é um crime que só aumenta no Brasil. Infelizmente, à mercê de uma sociedade que se recusa a debater abertamente o aborto, de uma imprensa que se cala ao invés de esclarecer e de políticos oportunistas que usam a fé religiosa para arregimentar cada vez mais eleitores, o Estatuto do Nascituro já foi aprovado na Comissão de Seguridade Social e Família e na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos deputados. Ele deve ainda passar pela terceira e última, a Comissão de Constituição e Justiça e depois seguir à votação no plenário.
O Estatuto do Nascituro se baseia na ideia religiosa de que células fecundadas já é uma vida, uma afirmação que está longe de ser um consenso. O Brasil é um Estado laico e deve ser orientado pela Constituição, não por qualquer preceito ou moral religiosa. O aborto é uma questão de saúde pública e de autonomia de mulheres sobre seus corpos!” O Estatuto do Nascituro, a “Bolsa Estupro” e a CPI do aborto são partes integrantes de um conjunto de iniciativas do Legislativo Federal visando implantar um clima de intimidação e terror às mulheres e naturalizar a interferência das religiões e suas concepções morais como uma prática que pretende ser legítima dentro dos marcos de um Estado laico. Aí reside um perigo real, pois se a sociedade brasileira não atentar para estas investidas correrá o risco de caminhar para um Estado confessional e teocrático. Trata-se de uma estratégia visível, basta verificar que os Projetos de lei que limitam e retiram direitos das mulheres são defendidos ostensivamente pelas bancadas fundamentalistas, compostas por deputados espíritas, evangélicos e católicos.
A sociedade brasileira precisa reagir e analisar, antes de tudo, qual o papel destes deputados no Parlamento brasileiro. Entre outras particularidades ver quais são os seus aliados, quais as suas articulações e o que defendem, além das leis restritivas às liberdades e aos direitos das mulheres.
É interessante notar que há importantes coligados a essas bancadas, por exemplo, os representantes do agronegócio e setores à direita que buscam aprofundar as propostas neoliberais e a entrega do país às grandes corporações transnacionais. Agrupam-se com os mais notórios agressores do meio ambiente, aos blocos econômicos que exploram trabalho escravo nas propriedades rurais, que promovem chacinas de indígenas, impedem as demarcações de terras indígenas e quilombolas, provocam desmatamentos criminosos nas florestas brasileiras, acabam com a biodiversidade, contaminam e empestam as reservas aquíferas de venenos e agrotóxicos, enfim, que matam todo e qualquer tipo de vida que possa limitar seus interesses. São esses os aliados dos fundamentalistas. A pergunta é: – Que vida eles defendem? E, finalmente para que servem estes parlamentares? Algum deles já apresentou algum Projeto de lei de interesse do Brasil e seu povo? Ou sua ação parlamentar é “bisbilhotar” e policiar a vida privada dos cidadãos e cidadãs?
Publicado em Monitoramento Cedaw em 20 de abril de 2014.