Cláudia Freitas/Jornal do Brasil – Um grupo de mulheres que tiveram os seus filhos recentemente na Maternidade Municipal Maria Amélia Buarque de Hollanda, no Centro do Rio, está usando as redes sociais para trocar informações sobre os chamados partos humanizados, denunciar supostos casos de negligência médica e uma sucessão de erros. As postagens no perfil Moms!, no Facebook, são semelhantes a um diário de tortura. O Ministério Público do Rio confirmou a existência de processo criminal contra a maternidade, originado de um registro policial coletivo feito por pais cujos filhos morreram após o parto, e que no momento aguarda por decisão no Tribunal de Justiça. As acusações contra a direção da maternidade são de falsidade ideológica e homicídio culposo.
Pais fazem protesto contra as mortes em frente à Maternidade Maria Amélia
No parto humanizado, a participação da gestante é ativa e determinante durante o trabalho de parto. A intervenção do médico só acontece num caso grave e extremo, assim como o uso de medicamento anestésico é muito reduzido. A mulher é quem escolhe a melhor posição e é autorizado o acompanhamento de um membro da família. O procedimento é assistido por uma enfermeira obstetra. Após o governo brasileiro registrar uma das mais altas taxas de cesarianas do mundo, entre os anos de 2000 e 2010, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou que essa estatística seja de apenas 15%, tanto na rede pública quanto na privada. A unidade médica que ultrapassar esse índice terá que arcar com os custos das cirurgias excedentes.
O presidente da Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia do Rio, Marcelo Burlá, disse que recebeu informações de muitos funcionários da Maternidade Maria Amélia de que eles são pressionados para interferir na decisão final das pacientes, convencendo elas a optarem pelo parto humanizado. Segundo Burlá, a maternidade mantém uma média de 18% de partos normais e de cada 100 bebês que nascem, quase dois morrem por asfixia. Ou seja, a Maria Amélia tem o maior índice de óbito de recém-nascido por asfixia em todo o Estado. Burlá ainda alerta que o parto natural não deve prejudicar a saúde da gestante e nem da criança, como os casos relatados pelas pacientes do Maria Amélia.
Raquel Lucy Abreu, de 19 anos, tem dificuldades para sair de casa e levar uma vida normal, consequência de um trauma causado pelo seu parto complicado no Maria Amélia, em agosto deste ano. Carla Marins, 29 anos, não consegue parar em casa e assume o máximo de compromisso possível para não pensar na trágica experiência que teve durante o seu parto e morte do seu bebê, no mês passado, na mesma maternidade. Raquel e Carla se conheceram, pessoalmente, nesta reportagem, mas elas estão em contato há mais de um mês pelo perfil do Facebook – Moms!. A cada dia aumenta o número de família revoltadas e reclamando do atendimento no Maria Amélia e os relatos mais se assemelham a um filme de terror com final trágico.
Raquel Abreu conta que chegou à maternidade no dia 8 de agosto, após ser indicada pelo Posto de Saúde Osvaldo Cruz, no Centro, onde realizou o seu pré-natal. Com 41 semanas e dois dias de gestação, Raquel afirma que deu entrada na maternidade sentido fortes dores e ao passar por um exame específico, a médica rompeu a sua bolsa e ela passou a ter perda de líquido amniótico. Depois desse episódio, Raquel lembra que foi levada para uma enfermaria e ficou acompanhada apenas pelo seu namorado, durante mais de nove horas. “Eu estava com uma dor insuportável, implorava pela presença de um médico, mas só aparecia de vez em quando uma enfermeira que ainda me dizia: ‘Não fez o filho? Agora tem que aguentar. Vai fazendo força aí. Você é muito frouxa’. Então, meu namorado me ajudou a chegar no banheiro e eu entrei debaixo da água fervendo. Chegou a me queimar, mas eu nem me importava. Até que desmaiei e quando voltei à consciência as minhas contrações já estavam de minuto em minuto, mas eu nem tinha mais força para reclamar. Estava desfalecida e me levaram para a sala de parto. Foi quando a minha situação conseguiu ficar ainda pior”, afirmou Raquel.
Segundo a jovem, na sala de parto uma médica subiu em cima dela várias vezes e pressionava a barriga para baixo, forçando a saída do bebê. Como não conseguia sucesso, a médica chamou uma pediatra para ajudar na manobra e as duas subiram em cima de Raquel. “Nessa hora a cabeça do meu filho saiu, mas o resto do corpo não. Foi quando eles fizeram várias incisões sem anestesia e conseguiram salvar o meu bebê”. Depois disso, Raquel foi levada para procedimentos no centro cirúrgico. No prontuário dela consta que ela teve laceração de 4 centímetros perineal envolvendo a mucosa retal. “Eu sentia queimação, muita dor, náusea, diarreia. Tinha certeza que eu ia morrer e o meu filho também. E tenho a lembrança de uma médica comentando com a outra que aquilo que fizeram comigo foi desnecessário, meu caso era de cesariana. Aí uma delas disse que ‘já que a m. estava feita, o jeito era consertar’. Eu não quero nunca mais passar por isso. Eu não quero mais pensar em ter filho”, desabafou Raquel.
O trauma de Raquel foi tão forte que ela nunca mais retornou ao Maria Amélia e procurou o posto de saúde para fazer a revisão da sua cirurgia e parto. Durante a entrevista, Raquel reavaliava o seu prontuário e observou outro fato grave. “Olha isso aqui. Eles erraram o meu tipo sanguíneo. Eles me perguntaram várias vezes qual era e eu dizia que era O negativo. Aqui [apontando no prontuário a anotação de O +]. Já pensou se eu tivesse precisado de sangue?”, comentou a jovem, que também teve a sua idade alterada para 189 anos no documento.
O primeiro contato de Raquel com a Maternidade Maria Amélia foi em maio deste ano, quando ela participou de uma palestra interna sobre parto humanizado e achou interessante a proposta. Como havia feito uma pesquisa pela internet sobre a maternidade e constatou as taxas de mortalidade de recém-nascido, Raquel perguntou o motivo de tanto óbito. “As enfermeiras me responderam para não me concentrar nos números, porque crianças morrem em hospitais todos os dias e ali eu teria toda a atenção do mundo. Eu acreditei”, disse ela. Nesse dia, uma grande emissora de televisão estava gravando uma reportagem especial sobre a maternidade e Raquel foi convidada para ser a ‘menina propaganda” da unidade médica. “Era para o Dia das Mães. Eu contei na entrevista que estava me sentindo segura com a palestra e adotei o parto humanizado. Hoje me arrependo do que falei publicamente. E depois de tudo que aconteceu, todas as atrocidades, a direção da maternidade ainda me pediu para publicar uma foto do meu filho recém-nascido no site deles. Eu não autorizei”, contou Raquel, que considera que seu momento mais mágico foi transformado num filme de horror.
De acordo com as histórias contadas pelas próprias famílias na página do Moms!, todos os casos graves eram de gestantes com gravidez prolongada e os partos chegaram a durar até 30 horas. A empresária Carla Marins conta que estava na 40ª semana de gestação quando deu entrada na Maria Amélia, no dia 2 de outubro. Segundo ela, apesar das fortes contrações e pequena perda de líquido, o hospital a liberou após entregar uma receita indicando o medicamento Buscopan para a dor. “Eles alegaram que eu não tinha dilatação e meu filho ainda ia demorar a nascer. Tive que voltar para casa”, afirmou a empresária. Carla voltou a ter fortes contrações e teve que ser levada de volta para a unidade, no dia seguinte. Ela ficou mais de 15 horas em trabalho de parto e durante esse período descreve praticamente os mesmos fatos ocorridos com Raquel. “Chegou uma hora que eu já andava nua pelos corredores procurando por um médico, tentei encontrar um bisturi para abrir a minha própria barriga, queria sair por uma janela para fugir daquele local de tortura, mas todas elas são vedadas. Sabe o que a enfermeira me respondia? ‘Ué, vai embora, ninguém está te prendendo aqui’”, contou a mulher.
O bebê de Carla foi direto para a UTI neonatal, mas não resistiu às complicações do parto e morreu três dias depois. Carla e seu marido culpam a maternidade pela morte do pequeno Marcel, que ainda teve o seu nome escrito incorretamente nos documentos do hospital. Ao ser informada da morte do neto, a mãe de Carla, a dona de casa Doralice Castro, gritava pelos corredores da unidade médica que haviam assassinado o bebê. Na mesma semana que enterrou o seu filho, o casal retornou à maternidade para pegar o prontuário do óbito, mas os funcionários justificaram que Carla não poderia retirar os documentos da unidade, porque eles haviam sido levados pelo diretor do hospital para a sua casa. Revoltada, a mulher quebrou os vidros da recepção da maternidade, usando uma chave de roda.
Prontuário com o nome errado do recém-nascido Marcel, filho de Carla e Marcelo
No mesmo dia e local em que Carla enterrou o seu pequeno Marcel, o casal Michele da Silva e Leonardo Freitas choravam pelo mesmo motivo. Após um trabalho de parto complicado e que durou 16 horas, Michele perdeu a sua pequena Isabela no Maria Amélia. Segundo a família, a mulher optou por cesariana, mas o seu desejo não foi respeitado e quando os médicos resolveram fazer a cirurgia já era tarde. A menina nasceu com 54 cm e 3 kg, mas sem batimentos cardíacos. Isabela chegou a ser reanimada na UTI neonatal, mas quatro dias depois não resistiu a outras duas paradas cardíacas.
A vendedora Sabrina Pimentel Lira, de 27 anos, fazia o pré-natal num posto de saúde perto da sua casa, no bairro de Olaria. Foi lá que ela ouviu excelentes comentários sobre a maternidade Maria Amélia, apesar do posto indicar as gestantes para o Hospital Geral de Bonsucesso. “Eu fiz uma ultra sonografia e o médico ficou preocupado, porque eu estava com 8 meses e meio de gestação e acusou no exame que eu estava com pouco liquido e o cordão umbilical com três voltas no pescoço do bebê. Ele mandou eu ir para o HGB, mas eu preferi ir para a Maria Amelia”, contou.
O menino que seria o primeiro filho de Sabrina, Paulo Henrique, entrou para as estatísticas de óbito do Maria Amélia. “O meu filho não resistiu ao tempo de espera, ficaram induzindo o meu parto normal, ministrando remédios para que as contrações aumentasse. Fiquei a noite inteira com dor, mas mesmo assim eles não pararam de me colocar esse remédio. A cada duas horas eles vinham escutar o coração do bebê. No segundo dia de internação, já não escutaram mais o coração dele. Resolveram fazer uma cesariana às pressas. Tomei dois tipos de anestesia e, por ultimo, a anestesia geral, porque quando fizeram a incisão eu ainda estava sentindo tudo. Meu sentimento na hora foi de muita revolta, tive complicações na cirurgia e meu marido teve que resolver todos os procedimentos do enterro sozinho. Infelizmente, nem conheci o meu filho”, contou a vendedora.
Micaela Leandro, de 22 anos, também vivenciou momentos de desespero nesta maternidade. O caso dela aconteceu no dia 30 de agosto, quando ela chegou ao hospital com dois centímetros de dilatação e muitas dores. A equipe médica seguiu o que parece ser o protocolo da casa: disse que a dilatação não indicava trabalho de parto, passou uma receita com Buscopan e mandou Micaela para casa. No trajeto de volta para a Ilha do Governador, as dores de Micaela se intensificaram e ela entrou em trabalho de parto, mas o seu marido não tinha como escapar de um enorme engarrafamento na Linha Vermelha. Conseguiu chegar a um acostamento e pedir socorro a policiais militares que passavam pelo local em em uma viatura. De volta ao hospital, a jovem ainda passou por um parto humanizado que durou mais de cinco horas. “Como nunca ninguém me disse o que era um parto humanizado, eu fiquei apavorada, implorava por socorro, achava que ia morrer de dor e a equipe médica nem ligava, como se estivesse acostumada com aquilo. O meu filho nasceu com a cabeça roxinha, olhos inchados, placas vermelhas e uma inflamação nas narinas. Penso em nunca mais ter filho novamente. Foi traumatizante”, disse Micaela. Segundo Dione, irmã de Micaela, ao reclamar do atendimento na recepção da maternidade, uma enfermeira avisou que todos os procedimentos e escolha para parto humanizado “são ordens do prefeito Eduardo Paes e devem ser seguidas”.
O médico obstetra Antônio Stockler esclarece que o trabalho de parto é diagnosticado quando a gestante está com três a quatro centímetros de dilatação, com contrações regulares a cada 10 minutos. A internação deve ocorrer quando houver trabalho de parto ou perda de líquido. A duração normal da gravidez vai da 37a. a 42a. semana. A cesariana deve ser indicada quando é observada durante o pré-natal qualquer intercorrência, como perda de líquido, infecção, aumento da pressão arterial da paciente. “Por isso que o pré-natal é tão importante, fundamental para a saúde da mãe e do bebê. Se o médico observar qualquer problema, deve optar pela cesariana”, disse Stokler.
Na opinião de Stokler, o parto humanizado pode ser uma boa escolha da gestante, mas ela precisa se preparar para esse tipo de procedimento e a equipe médica ficar atenta aos limites desse parto, para não colocar em risco a mãe e seu bebê. “Não se pode humanizar demais. Quando necessário, deve se optar logo pela cesária”, disse. Stokler exemplifica a importância da cesariana nos casos em que o bebê pode nascer com 4 kg ou mais, correndo o risco de ficar com a cabeça presa na mãe. “Se o recém-nascido ficar com a cabeça para fora e o tórax comprimido na mãe, em 10 ou 15 minutos, no máximo, ele pode morrer. Então, quando isso ocorre no parto normal, o médico deve fazer uma incisão maior na mãe e salvar os dois. Por isso que a equipe deve sempre contar com o pediatra e o anestesista. Questões financeiras não devem interferir na qualidade desse serviço”, disse o médico.
No caso de pacientes pouco colaborativas, que não fazem muita força durante o parto normal, Stokler explica que um caminho seguro é aplicar na gestante a anestesia peridural, que elimina em parte a dor, sem afetar a capacidade de fazer força. “A peridural não deve ser realizada em pacientes próximas do parto, devendo ser feitas no começo do trabalho de parto. Em mulheres com 9 a 10 cm o procedimento já não é mais indicado”, afirma.
Secretaria municipal de saúde comenta óbitos
No mês passado, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio divulgou uma nota à imprensa comentando os casos de morte de bebês na Maternidade Maria Amélia. Segundo a secretaria, “o Hospital Maternidade Maria Amélia Buarque de Hollanda realiza cerca de 450 internações obstétricas por mês, conta com excelente estrutura em termos de equipe clínica e equipamentos e apresenta indicadores de qualidade que vêm sendo reconhecidos pelo Ministério da Saúde e por instituições internacionais, como a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). Dentre esses indicadores está a taxa de asfixia abaixo de 1,5% em bebês com peso ao nascer maior de 2,5kg”. A nota finaliza afirmando que todos os casos de morte de maternos-infantis registradas na unidade são investigadas por comissões formadas na maternidade e na secretaria.
As famílias que perderam os seus filhos na Maternidade Maria Amélia procuraram a Polícia Civil nos últimos meses para fazer o registro de ocorrência. Representadas por advogados que estão trabalhando em parceria, o grupo familiar optou por um registro coletivo feito na 5a. DP (Mém de Sá), que deu origem à ação encaminhada ao Ministério Público Estadual, pedindo investigação por crime de homicídio culposo e falsa ideologia da direção do hospital. No momento, o processo está tramitando no Tribunal de Justiça.
De acordo com pais que foram atendidos na maternidade, além desses crimes e muita truculência e desrespeito da equipe médica, os prontuários foram entregues com muitos erros, como idade, na identificação dos pais, nome dos recém-nascidos, tipo sanguíneo da mãe, sexo do bebê e até dados clínicos com rasuras, prejudicando a sua avaliação médica. No prontuário de menina Isabela, filha do casal Michele e Leonardo, o sexo do bebê foi marcado como masculino.
Enquanto a ação segue o seu curso natural na Justiça, os debates sobre parto humanizado estão ficando acalorados a cada dia no Moms! Ativistas a favor do parto humanizado tentam convencer as mulheres de que este é o melhor procedimento para as futuras mamães. Por outro lado, quem passou pela Maria Amélia chama o parto normal de “parto da morte”.
Em outubro, um grupo de mães fez uma manifestação na porta da Maternidade Maria Amélia Buarque de Hollanda, com o intuito de chamar a atenção da opinião pública para os fatos graves que estão acontecendo no local. Mas esse movimento é apenas o início de uma longa jornada de luta que as famílias prometem, para fazer a justiça prevalecer.
Carla Marins, Raquel Abreu, Michele Silva e Leonardo Freitas, Janif Costa, Sabrina Pimentel, Ariane Katlei da Silva, Mayara Lena, Priscila Souza, Micaela Leandro e muitos outros vão intensificar a luta, alertando sobre o atendimento “humanizado” na Maria Amélia, para que as futuras mamães não saiam da maternidade com os braços vazios, o corpo com marcas profundas e tendo no coração as palavras da música de Chico Buarque: “A saudade é o revés de um parto. A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu”.
Fonte: Monitoramento da Cedaw. Publicado em: 16/11/2013.