Manual lançado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres busca combater sexismo na linguagem

Débora Fogliatto – Na língua portuguesa, a forma genérica de se referir a um conjunto de pessoas sempre é utilizada no masculino. Ao se cumprimentar um grupo de amigos e amigas, se diz “bem-vindos!”, ao mandar um abraço a um grupo de pessoas se diz “abraço a todos”, e assim por diante. É visando combater essa generalização excludente que a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) do governo do Rio Grande do Sul lançou o Manual para o Uso não Sexista da Linguagem, que serve como base para capacitações internas feitas com os servidores do estado.

Desenvolvido a partir de um grupo de trabalho formado no início de 2013, o material utiliza textos e exemplos para tratar não apenas de linguagem, mas também de questões como a construção social do gênero e as diferenças atribuídas a homens e mulheres. Logo no primeiro capítulo, “O papel da linguagem como agente socializante de gênero”, o Manual esclarece que “o gênero, feminino ou masculino, que nos adjudicam ao nascer, refere-se ao conjunto de características simbólicas, sociais, políticas, econômicas, jurídicas e culturais, atribuídas às pessoas de acordo com seu sexo”.

Para elaborar o Manual, foram convidadas especialistas, professoras e pesquisadoras em gênero, que formaram o grupo de trabalho. Elas firmaram uma cooperação que permitiu utilizarem como base um material similar publicado inicialmente no Máximo pela Rede de Educação Popular entre Mulheres da América Latina e do Caribe (REPEM-LAC) e posteriormente adaptado para o português do Brasil. “Nós, as integrantes do GT, o adaptamos à nossa realidade e com exemplos de textos da administração do Rio Grande do Sul”, contou a pesquisadora Leslie Campaner de Toledo, que participou da elaboração.

O Manual então foi lançado a partir de duas vertentes: além de ser utilizado como material de capacitação, o governo do estado publicou a Lei 14.84, que determina a utilização da linguagem inclusiva de gênero nos documentos oficiais e editais da administração pública.

Já foi realizada uma primeira oficina, da qual participaram servidores públicos, e a intenção da SPM é que elas continuem acontecendo. “Tivemos essa primeira oficina para ver como ia ser a receptividade e foi ótima. Além da palestra geral, nessa formação fizemos oficinas específicas para agentes administrativos, jornalistas, chefes de gabinete”, explicou a secretária de Políticas para as Mulheres, Ariane Leitão. Depois disso, há também a intenção de dialogar com veículos de comunicação.

 A linguagem como reprodutora do sexismo 

A ideia do Manual é mostrar como a linguagem, a gramática e as regras da tradição “reforçam os estereótipos e subordinam as mulheres ante os homens, quando não as fazem desaparecer”, conforme explica Leslie. “Com falácias como o masculino neutro ou masculino genérico ou a confusão — intencional ou não — entre os gêneros gramaticais e o sexo das pessoas, o sexismo se manifesta em todas as instâncias, desde a literatura aos documentos oficiais, uma convocação a um site, uma reportagem a um edital, etc”, completou.

A professora Jussara Reis Prá, coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Mulher e Gênero da UFRGS (NIEM), que também colaborou com o manual, aponta que, enquanto homens se sentiriam desconfortáveis caso fossem utilizadas palavras femininas para se referir a um grupo de pessoas, as mulheres já estão acostumadas. “Quando nomeamos os sujeitos a partir de uma linguagem não-inclusiva, que parece ter um caráter assexuado, estamos nomeando apenas um dos elementos da sociedade, que são os homens”, ponderou.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Essa exclusão das mulheres através da linguagem foi o que chamou atenção também da SPM, segundo a secretária Ariane. Ela esclarece que o objetivo de realizar o manual é mostrar para as pessoas que “a linguagem como está colocado não é inclusiva, não dialoga com todas as pessoas”. “Na nossa avaliação, a História e a linguagem são duas vertentes que reproduzem preconceitos a partir de valores de uma sociedade impostos para nós, mulheres.”, afirmou, utilizando como exemplo o fato de que as mulheres foram por muito tempo afastadas da vida pública no ocidente e excluídas dos livros de História e de arte.

Por isso, o manual se preocupa em construir uma linguagem que possa enfrentar preconceitos e ajudar em uma mudança social, de acordo com Ariane. “Queremos trabalhar na perspectiva de que a partir do que se lê, do que se escreve e do que se fala, a gente vá tornando a linguagem também mais plural. A gente quer ir tornando a linguagem mais representativa, para homens, mulheres, pessoas idosas, crianças”, explicou.

A iniciativa, é claro, encontra resistência entre setores mais conservadores em relação à língua portuguesa e entre os espaços de poder, sempre comandados por homens. “Qualquer ação afirmativa mexe com setores da sociedade que estão bem, são privilegiados. E tudo que é emancipação para mulheres soa ridículo para a sociedade, assim como no início soava ridículo as cotas para negros e negras”, critica Ariane.

Isso passa também pela ideia de que gramaticalmente é correto utilizar o masculino como genérico, sem discussão, que raramente é questionada. “A gente aprende e não se questiona, porque quando o faz percebe que não há nenhuma lógica ou razão para que o uso do masculino possa nomear o feminino, por exemplo. Quero acreditar que quando as pessoas se derem conta disto muitas irão fazer seu discurso inclusivo, e isto pode ir fazendo a diferença”, afirmou Leslie.

Fonte: Sul 21, publicado em 26 de julho de 2014.

 

Page Reader Press Enter to Read Page Content Out Loud Press Enter to Pause or Restart Reading Page Content Out Loud Press Enter to Stop Reading Page Content Out Loud Screen Reader Support