Telia Negrão, coordenadora do Coletivo Feminino Plural e integrante do consórcio nacional de monitoramento da Cedaw no Brasil, comenta o resultado da pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública feita pelo DataFolha que aponta que mais de um terço da sociedade brasileira atribui à vítima a culpa por ter sofrido estupro. Das pessoas ouvidas, 37% concordam com a frase “mulheres que se dão ao respeito não são estupradas”, porcentual que chega a 42% entre os homens, e 30% acreditam que a “mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada”.
Como você e os movimentos de mulheres recebem os resultados da pesquisa?
Os resultados da pesquisa DataFolha de um lado surpreendem, pois espera-se que a sociedade avance quanto a uma perspectiva de direitos humanos das mulheres, e de outro corroboram uma realidade já revelada por pesquisas anteriores e vivida pelas mulheres, em especial as jovens, na sua vida cotidiana. O estupro integra a experiência de muitas mulheres e meninas no país, desde o início da colonização do Brasil, passando pelos diversos ciclos históricos e econômicos, configurando o que chamamos de cultura do estupro. No momento atual, com o avanço de forças conservadoras para os espaços de tomada de decisão, é preciso que o movimento de mulheres e a sociedade demonstrem sua indignação e exijam medidas concretas para prevenir, punir e eliminar esse absurdo quadro de legitimidade que essa violência ainda alcança.
A cultura do estupro continua muito arraigada na sociedade brasileira.
Infelizmente essa realidade persiste graças à concepção patriarcal ainda presente, a qual autoriza os homens a desrespeitar as mulheres de todas as maneiras, ao mesmo tempo em que buscam manter o controle sobre seu corpo e sua vida. Como é uma prática legitimada pela própria sociedade, que acoberta e silencia frente a isso, diminui a importância e desacredita na palavra das mulheres. Por sua vez, as mulheres, vítimas da violência sexual, são julgadas pelo seu comportamento por uma ótica da falsa moral, pela análise do seu modo de vestir e portar-se em público e no privado. Exemplo disso foi o estupro coletivo da jovem no Rio de Janeiro por 30 homens no primeiro semestre desse ano, em que as reações de muitos setores da sociedade foram no sentido de sua culpabilização. Isso demonstra o quanto precisamos mudar.
Esse modelo de organização acaba por impedir o empoderamento das mulheres e o acesso a direitos básicos?
A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação à Mulher considera que a violência de gênero contra as mulheres é o principal mecanismo social de controle social, político e econômico através do qual se perpetuam a posição de subordinação que as mulheres ocupam na sociedade, mantendo papéis, lugares, posições de superioridade e inferioridade. É um obstáculo ao usufruto dos direitos humanos fundamentais e impedimento ao exercício da cidadania, por isso é uma questão da democracia também.
De que maneira esse pensamento reflete no empoderamento das meninas e mulheres e dificulta o acesso a direitos básicos?
Só há um caminho para alterar este pensamento, que infelizmente não é apenas dos homens, mas também perpassa as mulheres de todos os extratos sociais, a mudança de cultura, no modo de ver as mulheres como pessoas, com capacidades e potencialidades iguais, e também direitos. Educação com base na igualdade entre gêneros e respeito à diversidade, mídia democrática, não violadora de direitos pautada apenas pelo mercado, políticas públicas fortes para prevenir, punir e de fato eliminar a violência, o fim da impunidade dos agressores e estupradores e de todas das formas de discriminação.
De que forma o Brasil está ou deve enfrentar a desigualdade e a violência de gênero?
Essas propostas se viabilizam quando há um ambiente político e social propício, o que infelizmente não vem ocorrendo no Brasil, com a quebra das regras democráticas e a deposição da primeira mulher presidenta da república, com a perda de status do mecanismo governamental existe, a SPM, com os cortes dos recursos das políticas públicas e dos financiamentos às entidades não governamentais e a prevalência de uma concepção conservadora em todo o espectro governamental e no legislativo. Uma situação muito difícil mas que merece urgência no seu tratamento.