Tráfico humano: MS tem ‘tabela de preços’ para mulheres de acordo com a cor, diz especialista

Waldemar Gonçalves/Midiamax News – Quando soube que a Campanha da Fraternidade deste ano trataria do tráfico humano, a cúpula católica em Mato Grosso do Sul tratou de chamar a assistente social Estela Scandola para saber mais sobre o tema. Referência no assunto, integrante da Rede Feminista dos Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, doutoranda pela Universidade de Lisboa e cuja história de vida confunde-se com o estudo de temas sociais espinhosos, ela ajeitou o cabelo cuidadosamente pintado de roxo e parou um pouco de escrever seu artigo sobre a influência da globalização no tráfico de pessoas para conversar com o Midiamax.

estela 300x186 Tráfico humano: MS tem tabela de preços para mulheres de acordo com a cor, diz especialista

Estela Scandola na Escola de Saúde Pública, onde é gestora (foto: Diogo Gonçalves)

Estela destaca a importância da Igreja na discussão e prevenção do tráfico de gente, a dificuldade na articulação de ações conjuntas de combate e a triste realidade das vítimas, de homens semianalfabetos em busca do sustento de suas famílias a crianças e adolescentes usadas como mercadorias do sexo.

O que representa uma instituição como a Igreja Católica trazer à tona o tema tráfico humano?

É uma força muito grande porque a igreja, todas elas, tem uma capilaridade imensa nas comunidades, isso é fundamental. Segundo, a igreja consegue atrair a grande imprensa e dizer o que está acontecendo. Mas é preciso tomar cuidado para que valores conservadores presentes na igreja – não estou dizendo que toda a igreja é conservadora – não nublem a garantia de direito das pessoas. É preciso que a garantia de direito suplante a questão do que eu penso sobre o que a pessoa está fazendo. (A garantia de direito) Tem que ser, pensando em carnaval, a comissão de frente.

Recentemente fui abordada após uma palestra em uma igreja e me disseram: “Estela, acho bonito o jeito que você fala, só que é o seguinte, se a mulher quer continuar em pecado o que eu posso fazer?”. A pessoa não entendeu o que eu tinha dito. Estou dizendo: no enfrentamento ao tráfico não cabe nenhum julgamento sobre aquilo com que as pessoas estão trabalhando, não cabe a nós nenhum julgamento.

E a atuação policial?

Uma das coisas que questiono são os shows policiais. Isso é muito complicado para nós que enfrentamos o tráfico de pessoas. Fazem um furdunço, a imprensa inteira sabe… e a pergunta é: o que aconteceu com as mulheres? Em um caso de Rio Brilhante, em que a notícia foi “polícia estoura casas de prostituição”, liguei imediatamente para o delegado: “o que vocês fizeram com as mulheres?”. “As brasileiras, falamos pra elas irem pra casa. As paraguaias mandamos para a Polícia Federal em Dourados.”

Não se trata só de um trabalho de combate ao crime…

Você tem que ter um trabalho articulado de proteção às vítimas. O atendimento, a atenção às mulheres em situação de tráfico é fundamental.

A senhora integrou a Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil feita em 2000. O que mudou de lá para cá?

A Pestraf (Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil) foi decisiva para se implantar a Política Brasileira de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Porque foi feita no Brasil inteiro e denunciou a existência do problema, cientificamente. Junto com a Pestraf tivemos a CPI (da Exploração Sexual) em 2004, quando houve no Brasil a ratificação do Protocolo de Palermo e a mudança no Código Penal, que é uma mudança muito pequena (uma alteração no artigo 231, que passa a considerar o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual feito internamente no País).

E a legislação nacional facilita o combate?

O Brasil não tem uma lei antitráfico humano. Em 2006, aprovou a política nacional, mas o fez por meio de um decreto presidencial. Do ponto de vista do cumprimento das recomendações internacionais, o Brasil está descoberto por uma legislação antitráfico humano. A partir de 2000, você tem mais operações de enfrentamento ao tráfico, mas ainda baseada na visão internacional.

O que é muito ruim nesta novela, Salve Jorge (transmitida no ano passado pela Rede Globo), não é algo que nos ajuda a falar o que realmente acontece, porque pautou o tráfico a partir da saída das pessoas do Brasil, mas o maior índice é entrando e internamente. Belo Monte (Pará) é exemplo disso, rio Madeira, Jirau é exemplo disso. Quando você tem uma grande obra, você não tem o tráfico só para fins sexuais.

Vamos pegar como exemplo um município pequenininho qualquer, as mulheres que foram encontradas em condição de cárcere por dívida ou do não conhecimento da estrutura local de garantia de direito, por exemplo, uma mulher que não fala português, ela não sabe procurar seus direitos, ela entrou de forma irregular no Brasil, ela não quer ser pega.

Essas mulheres não estavam necessariamente só no mercado sexual, ela podia estar de dia no mercado alimentício e à noite fazia programas sexuais.

O que sabemos especificamente sobre a situação do tráfico humano em Mato Grosso do Sul?

Temos umas oito pesquisas bem-feitas, a Pestraf, uma que fala o que aconteceu com homens que saíram do trabalho escravo, um ano depois – esta muito interessante –, temos sobre exploração sexual de crianças e adolescentes na fronteira, sobre o impacto do setor sucroalcooleiro na exploração sexual.

Nesta pesquisa identificamos algo que a gente ficou abestada: as mulheres neste mercado sexual, as brancas têm um preço, as de pele mais escura têm outro preço, as negras quase preço nenhum e as indígenas nenhum preço.

Sobre a invisibilidade dos adolescentes, hoje você não tem mais pontos de exploração. A forma de aliciamento não é mais ponto de rua, é internet e telefone. As condições em que se traficam adolescentes na região de fronteira por exemplo, têm a ver com o intenso trânsito sem a atuação das políticas públicas. A fronteira em si não é problema para nós, a falta de políticas públicas sim. A fronteira todo mundo atravessa, faz compra. Quando dá o problema? Quando alguém tem seus direitos violados, aí a política pública: “ah, não posso ir, porque é fronteira”.

O que se deve fazer para combater o tráfico de pessoas?

Precisa fazer ações de prevenção real, não só ações de fazer palestra, isso é cristaleira. Se você tem um trabalho em favor das mulheres, dos desempregados, você efetivamente está enfrentando o tráfico. Se uma mulher está criando seus filhos sozinha, ela tem que ser destinatária de políticas públicas. Porque ela está ali no sufoco, mas ela tem uma fortaleza importante, ela quer sair dali e sustentar seus filhos.

Quando você tem um conjunto de homens com baixa escolaridade. Aí alguém diz “ah, mas homem não gosta de estudar”. Na verdade, a escola não se preparou para este tipo de público, ainda é aquela feita nos anos 70 para atender pessoas comportadinhas que concordam com tudo que o professor fala. Temos que ter políticas de base, valorização das mulheres, enfrentamento ao machismo.

Por exemplo, quando o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) dá um empréstimo imenso para instalar uma destilaria, junto com o empréstimo tinha que vir a exigência da responsabilidade dos empresários nisso, sem isso a pergunta é: “quando você tem um alojamento de 600 trabalhadores que se instalam em uma cidade e ali se instala um mercado sexual, de quem é a responsabilidade?”. É também do empresário, mas é também de quem financiou isso.

Dizemos isso muito, quem é que financiou o tráfico de pessoas para Belo Monte? O BNDES. Financiou a grande obra. Quem é que deu o dinheiro sem exigir nada dos empresários? Temos outro trabalho, e aí a igreja pode colaborar bastante, que é instalar a discussão na comunidade. E o atendimento às vítimas. Uma das coisas terríveis que a gente aponta (na pesquisa feita um ano depois com homens retirados de situação de trabalho escravo) é que, quando os homens voltaram para suas cidades, nenhuma política pública os atendeu. Eles chegaram em casa mortos de vergonha, com pouco dinheiro, as famílias bravas pela perda do sustento. E agora, fazer o quê?

Fonte: Monitoramento da Cedaw. Publicado em 07 de março de 2014.

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