coluna de Télia Negrão para o Jornal Extra Classe
Como assim? Essa foi minha reação outro dia ao ler um texto em que se aludia serem todas as mulheres, no fundo, donas de casa. O exemplo era a Kate Middleton, que trocava fraldas e dava de mamar, portanto, uma mulher igual a todas. Senti que o ideal de bela, recatada e do lar de novo estava sendo posto em cena. Em tempo de resistências – não importa se de seios de fora nas ruas, com ativismo na internet ou de bate papo na porta de casa –, me pus em alerta para seguir lendo. Minha admiração pela princesa que pariu com parteiras num hospital público não me leva a considerá-la igual a outras mulheres. Assim como não são Hillary, Dilma e minha vizinha.
Por isso, o título deste texto traz a repetida e mais difícil indagação feita cotidianamente a nós mulheres, e não raro pelas redes sociais, em tom de deboche. É difícil porque não há resposta fácil. Falar em nome de todas as mulheres a partir da biologia, ou associada ao feminino, é arriscar-se ao equívoco anunciado. A pergunta – que teria entrado na história por Sigmund Freud, ganhou notoriedade quando uma jovem paciente decide não seguir suas recomendações ao concluir que se conhecia mais do que outra pessoa –, hoje precisa ser respondida de modo diferente.
Precede definir de que lugar e em que tempo estamos falando. Nos anos de 1970 em diante, por exemplo, ocorreu a denúncia da situação das mulheres no mundo, a partir da constatação de que em todos os lugares viviam em subalternidade. O que parecia uma hipótese ganhou exemplos concretos na década de 1980: dados, números sobre trabalho (até 70% de mão de obra), salário (menos de 10% com carteira assinada), propriedade (1% dos proprietários), lugar na política (pouco mais que zero). E, por fim, creiam, a violência doméstica como uma marca comum, que de tão naturalizada e difícil de ser medida, parecia não existir.
Assim, se pode dizer que há cerca de 40 anos as mulheres passaram a constituir, em geral, a maior parcela de desiguais do planeta. A outra metade, por ser do sexo masculino, gozava de privilégios, modelo universal do espécime humano, já identificado por Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo (1949). Ela previa que as conquistas femininas seriam questionadas, pois a quebra de padrões gera medo e instabilidades. Quando um ganha, outro perde.
A consciência de mulheres como seres semelhantes na desigualdade ou desgraça, portanto vivendo na indignidade frente aos direitos humanos universais, é algo contemporâneo. Com raízes na Modernidade, ainda que ao longo da convivência humana registrem-se as fogueiras contra as feiticeiras por representarem reservas de saber: dos astros, minerais, plantas, corpo humano, e se relacionavam com os mistérios da vida e da morte. Conhecimento é poder.
Na França revolucionária, Olympe de Gouges (1748 – 1793) teve seu fim na guilhotina ao contestar a Declaração dos Direitos do Homem e difundir sua Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. Entrou para a História por expressar um sentimento de época, sob pesado véu de repressão.
Hoje, quando falamos de quereres das mulheres, o fazemos a partir de alguns séculos de lutas e resistências a uma cultura patriarcal, com modos e linguagens novos, mas também é necessário, uma vez mais, explicitar de onde se fala. Falamos de um movimento nascido no final da década de 1970, que ganhou dimensão cidadã ao mesclar-se na denúncia à ditadura e entrou na agenda pública na batalha pela Constituição de 1988.
Transformou-se em plataforma política na interpretação da realidade de milhões em todo o país e ganhou expressão no processo das Conferências de Políticas para as Mulheres desde 2003. Até 2016, a cada quatro anos, centenas de milhares de mulheres do campo, da cidade e da floresta apontaram prioridades: fim da violência, poder, trabalho, saúde, educação, uma cidadania não obtida até ali. A política pós impeachment da primeira presidenta mulher mostra tendência ao esvaziamento dessa esfera. Afinal, mulheres ali não falavam por todas?
Arrisco a dizer que o surgimento dos direitos humanos universais contemporâneos estabeleceu um patamar mínimo aceitável como critério de dignidade, mas só em 1993 a Declaração de Viena inclui as mulheres e meninas. Seus direitos não podem ser violados, por ação ou omissão, nos âmbitos público e privado, não importa onde (lembro de Boko Haram). Reconheceu que todas as mulheres estão sujeitas a violações específicas, nos fazendo refletir: quais medos nos unem ainda hoje. Ouvindo as mulheres afirmo, a violência, em especial o estupro, o corpo violado. Embora haja outros temores, como da própria morte, persiste a ideia comum de que estamos num mesmo time, das que tem a palavra duvidada, a voz desvalorizada.
Tão antiga, a prática de discriminação das mulheres está nas Mitologias, na História, na Cultura dos povos – em cada tempo foi vista e interpretada, e até aceita para a acomodação de outras “verdades”: a família acima da liberdade de sair da relação violenta, o silêncio para manter a paz na casa, ou no passado remoto, para agradar aos deuses no Olimpo.
Talvez fosse mais fácil responder à pergunta “o que querem as feministas”. Elas (nós) têm um corpo político e teórico bastante potente a respaldar seu discurso, uma ação política que se multiplica e renova há mais de dois séculos, e em sua base está a questão da autonomia, da igualdade, da justiça. Serve como uma referência permanente a todas as mulheres. Referência. Estão nos grafites “Respeita as mina”, nas campanhas #mexeucomumamexeucomtodas, num alerta #nemumaamenos, e na emblemática frase sobre o significado das mulheres no poder, #voltaquerida.
Produtos históricos e também suas produtoras, as mulheres estão imersas na mesma cultura que os homens, vivendo num campo concreto e simbólico cheio de contradições, onde o passado e o presente estão em permanente disputa.
Por essa razão, as mudanças são lentas, de vez em quando acumulam-se e damos passos à frente, olhamos e vemos que cada uma de nós é outra mulher. Passamos a desejar coisas que antes não faziam sentido, com sensações de liberdade e prazer, de uma espiritualidade antes latente, de uma presença e uma ausência, um desejo de poder. Talvez o que nos una seja a possibilidade de escolher por nós mesmas, e até mesmo não responder a essa pergunta.